Crítica do filme A Garota do Livro

Somos todas um pouco Alices

por
Lu Belin

02 de Junho de 2016
Fonte da imagem: Divulgação/Varient
Tema 🌞 🌚
Tempo 🕐 6 min

☕ Home 💬 Críticas 🎭 Drama

“Depois de quebrar, nunca mais voltamos a ser como antes. Haverá sempre uma marca que será tão você quanto o tanto de você que ainda não quebrou. Viver, Catarina, é rearranjar nossos cacos e dar sentido aos nossos pedaços, os novos e os velhos, já que não existe a possibilidade de colar o que foi quebrado e continuar como era antes.”

Esse trecho em destaque faz parte de um dos textos mais cheios de significado que eu já li, a crônica “A Menina Quebrada”, da jornalista e escritora Eliane Brum. O que ele tem a ver com o assunto esse texto que eu escrevo agora, sobre o longa “A Garota do Livro”? Nada, mas tudo, ao mesmo tempo. 

Dirigido e roteirizado pela quase estreante Marya Cohn – que havia até então participado de produções mais modestas e dirigido apenas um curta-metragem –, o filme conta a história de Alice (Emily VanCamp), uma jovem funcionária de uma grande editora de Nova Iorque, que é responsável pela leitura e pré-seleção de obras que serão publicadas pela editora. 

Ao negociar uma publicação com seu editor, ela acaba sendo forçada a confrontar um capítulo problemático de seu passado, quando Milan Daneker (Michael Nyqvist), um autor famoso e celebrado nacionalmente, chega à editora e entra novamente em sua vida, reabrindo feridas e resgatando traumas do passado. 

Alice através do espelho

Em algum momento do passado, Alice quebrou. Não sabemos muito bem porque. A forma como a Marya decidiu contar essa história foi construir uma narrativa que conduz o público paralelamente por entre os fatos do presente e do passado da protagonista: é Alice olhando no espelho e tentando ler, escrever e compreender sua própria história, buscando assumir ou se livrar de culpas podem não ser suas, se esforçando para lidar com traumas e feridas que dependem apenas dela para fecharem.

A Garota do Livro

Enquanto acompanhamos a jovem de 28 anos que concilia sua rotina na editora com sua vida pessoal de one night stands em bares e pubs e de encontros com a amiga Sadie (Ali Ahn) nos parques nova-iorquinos, também somos apresentados à Alice adolescente, interpretada por Ana Mulvoy-Ten – que, believe me, tem 24 anos! 

Ainda adolescente, ela começa a revelar talentos literários imediatamente reconhecidos pelo pai e pela mãe – ambos empresários do ramo da literatura – e por um dos clientes dos mesmos: o escritor Milan Daneker, que passa então a ajudá-la a desenvolver sua técnica de escrita, mas acaba influenciando Alice de outras formas, criando conflitos, dúvidas e culpas na personagem que permanecem com ela até muitos anos no futuro.

A Garota do Livro

Roteiros construídos dessa forma podem ser sempre muito interessantes e ajudam a quebrar a monotonia de uma história contada apenas cronologicamente - e "A Garota do Livro" consegue fazer isso magistralmente. As memórias da protagonista são muito bem amarradas na história contemporânea e a evolução da narrativa acompanha o desenvolvimento da personagem, seus momentos de sofrimento, alegria, dor e redenção – não necessariamente nessa ordem.

Para sempre Alice

"A Garota do Livro" é um conto sobre como os acontecimentos do passado quebraram uma menina, moldaram a protagonista e a construíram da forma como ela é hoje. A maneira como constrói suas relações com os pais, com os colegas de trabalho e com a amiga Sadie, seu comportamento em sua vida romântica e sexual, sua atitude frente ao seu talento e atuação como escritora. 

Uma personagem em constante conflito não é pra qualquer atriz e Emily VanCamp foi a escolha perfeita para isso. Papéis com esse ar de mistério e personas que não deixam transparecer muito bem quem são vêm sendo a marca da carreira da atriz, que já interpretou, entre outros, a confusa e delicada Rebecca Harper na extinta série "Brothers & Sisters" e a estratégica Emily Thorne, na mais recente novelona "Revenge". 

Quem acompanha o trabalho da atriz consegue perceber várias similaridades entre as três personagens. O olhar perdido, a timidez e o semblante que consegue não deixar transparecer absolutamente nada do que passa por aquela cabecinha. Mas, em "A Garota do Livro", Emily se supera. Ela conseguiu captar a complexidade da personagem e circular muito bem entre os momentos marcados por diferentes sentimentos que a protagonista vive. 

A Garota do Livro

Já a adolescente Alice permanece uma incógnita. Talvez Ana Mulvoy-Ten não tenha sido a melhor escolha para interpretar a personagem no quesito aparência – a atriz não lembra nem de longe a colega Emily VanCamp. Em termos de interpretação, ela dá conta do recado, mas não se destaca. 

O elenco principal é todo muito competente. Destaque para o Michael Nyqvist (o Mikael Blomkvist, da versão original sueca da trilogia Millennium) que consegue aparentar tudo o que o personagem precisa ser – sem detalhes, para evitar spoilers! 

Simplesmente Alice

Fiquei surpresa ao descobrir, depois de ter visto no cinema, que a produção começou com uma campanha de financiamento coletivo no Kickstarter e que "A Garota do Livro" é, na verdade, um filme bem independente. A parte técnica é, de fato, toda muito simples. Cenários fáceis, muitas tomadas internas e uma caracterização de personagens bastante básica – o que inclui figurino e maquiagem, por exemplo. 

O quanto isso prejudica a qualidade do produto final? Em nada. Com atores bons, um roteiro afiadíssimo e muito bem dirigido, o longa conta ainda com uma trilha sonora bem adequada à proposta e que super contribui com o andamento da história. 

A Garota do Livro

Com a profundidade da temática e com o tanto de reflexões que o filme desperta no público, nada disso realmente importa. Vá ver "A Garota do Livro" e discuta o tema com os amigos, pois precisamos falar sobre Alice e todas as outras meninas quebradas como ela, porque todas nós mulheres temos um pouco de Alice.

Não vá com pressa. O filme não é longo, mas tem uma narrativa que demora um pouco para chegar onde realmente queremos que chegue, enquanto espectadores. No entanto, vale cada minuto. De longe, um dos melhores filmes que 2016 já nos apresentou até o momento. 

Fonte das imagens: Divulgação/Varient

A Garota do Livro

Como reescrever uma história?

Diretor: Marya Cohn
Duração: 86 min
Estreia: 26 / Mai / 2016
Lu Belin

Eu queria ser a Julianne Moore.