Crítica do filme Uma Mulher Fantástica

A luta diária contra a opressão

por
Fábio Jordan

04 de Setembro de 2017
Fonte da imagem: Divulgação/Imovision
Tema 🌞 🌚
Tempo 🕐 5 min

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As estatísticas revelam que uma pessoa LGBTT morre a cada 25 horas por pura violência. Para este grupo, não é preciso fazer nada (além de existir) para viver com medo do que pode acontecer ao acordar e criar coragem para sair de casa — isso sem contar as chances de agressão dentro da própria residência.

Pois é, não é preciso ser um gênio para perceber que o ser humano tem dificuldades em aceitar o diferente. O pior é que além da rejeição àqueles que não se encaixam nas normatividades, há um grande movimento para combater as minoridades, seja com o uso de violência verbal, física ou até psicológica.

É neste contexto que “Uma Mulher Fantástica” nos apresenta Marina, uma mulher trans que acaba de sofrer com a perda de seu parceiro — um homem de quase 60 anos — e que está prestes a passar por uma longa jornada de luto e impedimentos de ao menos dar o adeus para seu amante.

Sendo a única presente no momento em que Orlando partiu, ela se vê diante do medo, da raiva e do preconceito da família dele. Qualquer reação pode soar extrema, ainda mais considerando a visão que outros têm quanto ao relacionamento deles. Assim, ela tem de usar de toda sua garra para enfrentar cada situação e tentar seguir em frente.

A pauta é recente e imprescindível para um cinema mais abrangente, sendo que temos aqui um filme bastante ousado em termos de produção. Uma pena que o desenvolvimento não vá muito além do superficial. Vamos falar mais disso.

Em busca da felicidade

Como em toda história de amor, o romance de Marina e Orlando é a peça-chave para toda a construção do argumento central do filme. As primeiras cenas são só love e mostram com naturalidade a relação dos dois, onde dois adultos com consentimento de causa decidem se amar e viver felizes. Para uma mulher trans, este pode ser um desafio gigantesco, então é maravilhoso ver um roteiro dando esse tipo de espaço no cinema.

Contudo, a alegria nem sempre dura muito tempo e aí é que vem a reviravolta do filme. É claro que para uma construção coerente, o script mostra os dois lados da moeda: o da Marina, em seu luto, e o da família de Orlando, no sofrimento e na situação atípica — afinal, considerando a heteronormatividade e o conceito familiar do senso comum, essa história “pega mal” para o falecido.

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Só ninguém pensa o quanto essa opressão pega péssimo para um ser humano que tinha um relacionamento com outro. Eis aqui o grande xis da questão, onde o filme tenta mostrar a busca da personagem apenas por um direito básico, de se despedir de um parceiro amoroso. E, do outro lado da história, uma imensidão de dificuldades.

Nesse sentido, a atuação brilhante de Daniela Vega. Ela, que é uma mulher trans na vida real — e já teve vivência quanto a todos esses pormenores — pode realmente levar não apenas interpretação, mas verdade para a telona. Este é talvez o grande trunfo do filme, que se mostra honesto e muito realista.

Apesar de coerente em seus argumentos, o roteiro de “Uma Mulher Fantástica” pega leve em vários momentos. Marina trabalha como garçonete e, vez ou outra, também como cantora em um clube dançante. Com foco nos relacionamentos com a família de seu ex-namorado, o filme não dá espaço para a rejeição nesses outros âmbitos — o que é bom também, para não virar uma grande bagunça.

Truques da mente bem retratados

É impossível saber o que se passa na cabeça de Marina, mas o diretor Sebastián Lelio faz um bom trabalho ao retratar reflexões de uma mente já desgastada pelo estresse diário decorrente da opressão. A personagem bastante contida se mostra reflexiva em várias situações, quando parece demonstrar sua preocupação existencial.

Com abusos verbais e até físicos, não são raras as situações em que o filme tenta traduzir os sentimentos de Marina diante de espelhos, com sua feição deformada, simulando a visão que o mundo tem dela. Felizmente, o roteiro não se pronuncia por diálogos e dá margem para a plateia refletir sobre as injustiças no trato e na aceitação para com as Marinas do dia a dia.

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Em outras situações, vemos a personagem lutando claramente contra as convenções do mundo, indo contra o vento, tentando dar seus passos na calçada da vida. É interessante notar que o diretor faz tudo isso de forma sutil, aproveitando elementos reais do filme e dialogando de forma artística com o espectador. Grandes sacadas que deixam o filme mais profundo.

Uma pena que toda essa alegoria e as várias deixas de suspense não levam a um gran finale — ou talvez eu estava esperando muito mais do que o filme promete, mas esse foi meu parecer diante de uma trilha sonora tão chamativa e de cenas que levam a imaginar inúmeras coisas.

Assim, apesar de faltar surpresas, o resultado de “Uma Mulher Fantástica” é bem honesto em sua essência, tanto no retrato da personagem quanto nas situações enfrentadas — por Marina e por outras pessoas que ainda não sabem como lidar com tais assuntos. Um grande passo cinematográfico para dar mais voz e vez para os LGBTTs.

Fonte das imagens: Divulgação/Imovision

Uma Mulher Fantástica

Mais uma luta para uma lutadora incrível

Diretor: Sebastián Lelio
Duração: 104 min
Estreia: 7 / Set / 2017