Crítica A Própria Carne
Tema o desconhecido! Um filme de terror brasileiro que arrepia pela atmosfera sinistra!
Em pleno desfecho da Guerra do Paraguai, três soldados desertores encontram refúgio improvável em uma casa perdida no meio da mata. Exaustos, desesperados e necessitando de ajuda médica, eles acreditam ter escapado da violência do front. Contudo, a aparente tranquilidade logo se desfaz quando percebem que os moradores dali — um fazendeiro enigmático e uma jovem silenciosa — ocultam segredos tão sombrios quanto a própria guerra. O que começa como busca por abrigo rapidamente se transforma em um mergulho sinistro nas profundezas do medo e da loucura.
A Própria Carne chega aos cinemas como um projeto independente idealizado por Deive Pazos e Alexandre Ottoni, os nomes por trás do Jovem Nerd, em parceria com Ian SBF, que divide o roteiro e assume a direção, consolidando a transição de diretor de alguns projetos do Porta dos Fundos para uma obra de terror cinematográfica ambiciosa.
Desde o início, o projeto nasceu sob a bandeira da coragem e da confiança na própria comunidade. Muito além do investimento dos criadores, o filme ganhou vida graças a uma campanha de financiamento coletivo que reuniu centenas de fãs dispostos a colocar dinheiro próprio na realização de um terror nacional ousado. O resultado representa não apenas um marco de produção independente, mas também a transição de nomes que já conquistaram o público na internet para uma narrativa madura, sombria e ambiciosa nas telonas.
Logo de início, destaca-se Luiz Carlos Persy, cuja presença em cena domina a atmosfera com magnetismo absoluto. Muitos talvez não reconheçam seu rosto, mas dificilmente esquecerão sua voz. Persy emprestou seu talento a personagens icônicos da dublagem brasileira, como Lord Voldemort em Harry Potter, Gandalf em O Senhor dos Anéis e Joel em The Last of Us. Sua capacidade vocal já era temida e reverenciada; agora, sua presença física encontra um papel à altura, compondo um antagonista que flutua entre o real e o inexplicável.
É inevitável abordar um ponto sensível: o preconceito histórico do público brasileiro com o cinema nacional, sobretudo o terror. A falta de verba já rendeu obras honestas, porém limitadas em efeitos ou maquiagem, alimentando uma injusta desconfiança sobre nosso potencial no gênero.
Contudo, o Brasil sempre abrigou um folclore rico, uma história sangrenta e um imaginário cultural único. Faltava apenas um filme disposto a reivindicar essas raízes com ambição. A Própria Carne surge justamente como esse divisor de águas. Será que vale a pena ver A Própria Carne? Estaríamos diante de uma virada para o terror brasileiro? A resposta, felizmente, é promissora.
A Própria Carne vale a pena?
A Própria Carne surpreende ao unir terror histórico, atmosfera claustrofóbica e uma construção narrativa gradual, inquietante e madura. Com destaque para Luiz Carlos Persy, direção segura de Ian SBF e um capricho técnico que ajuda na construção do clima de horror, o filme entrega tensão constante, ambientação impecável e um final impactante. Um terror brasileiro que merece ser visto no cinema.
A premissa bebe de fontes históricas, situando o espectador em um Brasil antigo, violento e real — o que dá ao filme um ar quase documental no início. A casa isolada e o estranho senhor que a habita remetem ao arquétipo clássico do “horror rural”, porém o longa nunca se acomoda em clichês. O isolamento, a fragilidade dos soldados e o silêncio opressivo constroem um ambiente onde o desconhecido sempre parece observar — ainda que escondido na escuridão.
A ambientação pré-eletricidade é decisiva: a luz de velas, os cômodos estreitos, as sombras que engolem metade do quadro e os sons abafados da floresta criam sufocamento contínuo. Cada canto da residência parece esconder algo vivo e perigoso, enquanto o lado externo oferece pouco alívio com sua mata fechada, cheia de ruídos, galhos estalando e sombras que parecem querer engolir o espectador. Muito terror aqui nasce da sugestão — e o filme entende que, muitas vezes, o que não vemos é mais aterrorizante do que o que é mostrado.
A narrativa alternada entre os desertores mantém o suspense em alta, revelando pedaços do mistério com parcimônia. Nada aqui se entrega de imediato. Os diálogos fluem com naturalidade, e mesmo quando o vilão flerta com um tom quase ritualístico — algo entre conto folclórico e delírio místico — isso sustenta o clima de fábula sombria, ecoando tradições do horror literário.
Há momentos que remetem às histórias de H. P. Lovecraft, não pela explicação explícita do desconhecido, mas pelo cuidado na construção do ambiente e pelo uso de pequenos detalhes que alimentam o desconforto. Cada ruído abafado, cada olhar desconfiado e cada elemento do cenário opera para insinuar que a ameaça é maior do que o espectador consegue compreender de imediato, reforçando uma atmosfera sufocante e meticulosamente arquitetada.
O elenco entrega com força, e apesar de nomes menos conhecidos do grande público, cada personagem parece carregado de história, trauma e medo real. Luiz Carlos Persy, por sua vez, domina o filme. Sua postura, seu olhar e sua cadência ao falar imprimem autoridade e terror sem esforço. Ele é a engrenagem que move o mistério e sustenta o horror até o último segundo.
A construção técnica de A Própria Carne impressiona. Figurino, direção de arte e maquiagem trabalham com rigor para inserir o espectador naquele período. As roupas gastas, a sujeira, o sangue seco, os tecidos ásperos, tudo contribui para a imersão total. A fotografia aposta em profundidade, contraste e escuridão — e a escuridão aqui é personagem. O jogo entre o que se vê e o que se insinua mantém a mente inquieta. A brutalidade, quando surge, é crua e visceral, sem exageros gratuitos. Não é um gore carnavalesco, mas o suficiente para deixar a pele arrepiada e o estômago tenso.
A sonoplastia merece elogios particulares. Cada ruído da mata, cada respiração, cada rangido constrói tensão. A trilha de Bruno Gouveia amplifica o desconforto com cordas distorcidas, notas longas e ruídos que parecem ecoar de um pesadelo distante. Som e silêncio trabalham juntos, preparando o terreno emocional para o espectador ser surpreendido.
No desfecho, o filme entrega sua carta final com coragem. O clímax não só recompensa a construção lenta, como expande o escopo do terror para algo maior, mais ancestral, mais perturbador. Há um toque inevitável de horror cósmico, aquele medo do indescritível que arrasta o público para o abismo junto com os personagens.
A Própria Carne não é apenas um excelente filme nacional; é um manifesto de que o terror brasileiro tem carne, sangue, ossos e alma. Revela talentos, honra nossa história, bebe de fontes literárias profundas e executa com precisão. É um sopro poderoso para o gênero no país, e muito provavelmente um marco que será lembrado no futuro. Uma obra que merece ser vista na tela grande, com o coração preparado e os ouvidos atentos.
Se o Brasil sempre teve potencial no terror, talvez este seja o momento em que a cortina se abriu de vez.
Atenda ao chamado. Há algo vivo na escuridão. E tem fome.
Há outros pesadelos além do campo de batalha