Crítica do filme Deslembro
Memória e sensibilidade
Lembrar, para nunca mais esquecer. Aprender, para nunca mais repetir. As ditaduras militares são feridas que seguem abertas na história da América Latina, atormentando a vida de famílias que, até hoje, seguem sem saber o destino de alguns de seus famIliares, embora a essa altura já tenham assumido que estejam mortos. É sobre uma dessas famílias que se centra a narrativa de "Deslembro", filme com roteiro e direção de Flavia Castro.
Nele, Joana (Jeanne Boudier) é uma adolescente brasileira que mora na França com a mãe, Ana (Sara Antunes), os irmãos, Paco e Leon (Arthur Raynaud e Hugo Abranches), e o padrasto, Ernesto (Antonio Carrara).
Quando a Lei da Anistia é decretada no Brasil, em 1979, a família decide retornar ao Brasil e encontra uma casa no Rio de Janeiro, onde Joana, mesmo contra a vontade, começa a reconstruir alguns laços e a recuperar lembranças de quando ela ainda era pouco mais do que um bebê.
Mesmo contra a vontade, já que queria ficar na França, onde estava toda a sua vida, ela aceita retornar, visitar a avó paterna e participar de alguns eventos dos amigos ex-militantes da mãe. Todo esse envolvimento com o lado brasileiro de sua vida faz com que Joana se confronte com algumas histórias e verdades sobre o pai, Eduardo, um dos ativistas desaparecidos na Ditadura.
Ao mesmo tempo, Joana lida com a adolescência, um período que não é fácil pra ninguém, e todo esse turbilhão de sentimentos transforma suas relações e sua forma de ver o mundo.
"Deslembro" é uma daquelas histórias em que nada e tudo acontece ao mesmo tempo. Pouco nele acontece de concreto, mas a história está ali, na mente da personagem, nas suas lutas e angústias.
Os fatos da história acontecem principalmente no passado, e o longa-metragem retrata muito mais suas consequências e desdobramentos emocionais. Mas Flávia Castro faz um trabalho belíssimo com isso.
As vivências da personagem e daqueles ao redor dela são retratadas com extrema sensibilidade, utilizando recursos como closes, recortes na fotografia, silêncios, presença e ausência de trilha sonora, de forma que o público consegue sentir em parte o que a protagonista está sentindo - a tristeza, a confusão, o desejo, a raiva, o mix todo.
E parte do crédito por isso é da atriz que dá vida a Joana, a estreante Jeanne Boudier. Embora seja seu primeiro filme do tipo, a garota arrasa no papel, transitando entre três idiomas com naturalidade, enquanto traz à tona os sentimentos complexos pelos quais Joana está passando.
Para quem se emociona com o assunto da ditadura militar brasileira e todo o sofrimento que este período causa até hoje, "Deslembro" é um prato cheio, um filme emocionante que consegue levar às lágrimas mais do que uma vez.
Por outro lado, para quem se cansa fácil, o filme pode se tornar um pouco exaustivo depois da primeira hora, justamente por ser muito mais pautado na sensorialidade, nos closes de câmera, nos pequenos momentos. Isso faz com que o espectador fique com a sensação de que o tempo não passa e que a história não avança. Mas, se você está disposto a mergulhar na trama no que ela significa para nós, enquanto brasileiros, tudo o que vai ter em frente é uma boa história para não esquecer.