Crítica do filme Raça
O retrato de um homem e de uma época
Jesse Owens é uma das figuras mais icônicas do esporte norte-americano - talvez do mundo. Um dos primeiros negros a conseguir destaque nas pistas de corrida e no salto em distância em um dos países que até hoje está entre os mais racistas do mundo, ele foi além disso: ficou cara a cara com Adolf Hitler quase no auge do regime nazista, nos Jogos Olímpicos da Alemanha, em 1936.
Até que demorou para a galera do Tio Sam querer contar a históra de Owens, mas agora finalmente podemos vê-la brilhantemente contada pelo olhar dos roteiristas Joe Shrapnel e Anna Waterhouse, em um belíssimo filme dirigido por Stephen Hopkins.
Em "Raça", Stephan James (Selma) dá vida a um mais baixo, mais encorpado e menos desengonçado Owens do que o original. Crescendo em uma família de condições financeiras restritas, o atleta é apresentado no longa-metragem a partir do ano em que é aceito na Universidade de Ohio, deixando sua cidade-natal e, junto com ela, os pais, irmãos, a namorada Ruth (Shanice Banton) e a filha Gloria (Yvanna-Rose Leblanc e Kayla Stewat).
Nesse percurso, acompanhamos sua turbulenta entrada na comunidade acadêmica, onde nem de longe podemos dizer que foi bem aceito pelos colegas. Se hoje, em 2016, a porcentagem de pessoas de pele negra ainda é reduzida nas universidades, imagine na década de 30.
Quem enxerga para além da pele até as habilidades do esportista é o treinador Larry Snyder (Jason Sudeikis) que percebe o talento de Jesse e vê nele a chance de uma medalha olímpica para os Estados Unidos. E aí começa a dura rotina de treinamento do garoto de Cleveland.
Assim como são três as modalidades esportivas às quais Jesse se dedica, a trama de "Raça" também se sustenta basicamente sobre um tripé.
A dedicação ao treinamento e os conflitos familiares gerados pela distância de casa e pela fama repentina de Jesse complementam a base de um roteiro extremamente bem escrito e que tem como ponto central a questão do preconceito racial frente a um contexto turbulento da história da humanidade.
A maneira como Jesse lida com as provocações dos colegas brancos desde o primeiro dia na faculdade transita entre um retrato fiel aos fatos biográficos do atleta e algumas cenas ficcionais que conferem mais romantização e dramatização - fazendo com que sua saga seja ainda mais heróica.
No entanto, o mais surprendente deste filme é o retrato histórico para além até mesmo do próprio protagonista. O longa-metragem faz um impressionante trabalho de "esfregamento de realidade na nossa cara", como eu eu costumo dizer.
Explico: Mais do que uma ~América hipócrita e racista que oprime e marginaliza um jovem negro que rompe barreiras discriminatórias e sociais para entrar na universidade - a mesma que o idolatra quando o vê tornar-se um gigante no esporte nacional e trazer glórias para o país -, "Raça" faz um desenho breve, mas justo, da sociedade alemã nos anos pré-Segunda Guerra Mundial, quando, meio por debaixo dos panos, meio na cara dura, os seguidores de Hitler e Goebbels arrancam descendentes judeus de seus lares, os excluem de toda e qualquer atividade - inclusive a esportiva - e iniciam um dos maiores genocídios da história.
E o que a gente vê na tela são cenas assustadoramente similares - guardadas as devidas proporções - aos relatos de violência e discriminação que temos ouvido por aí, em tempos de Trump, Temer, Cunha e Bolsonaro.
Vou deixar você com essa reflexão enquanto sigo para os próximos aspectos do filme.
Além de contar uma bela história de uma forma emocionante, Raça também é um rostinho bonito no que diz respeito ao aspecto estético.
Atores obviamente dentro de todos os padrões estéticos foram escolhidos para o papel dos protagonistas e da maioria dos coadjuvantes e vestidos para o sucesso, claro. Tudo muito caprichoso na hora de reproduzir o figurino dos anos 30, a maquiagem das moçoilas e os cenários nas casas, festas e vestiários.
Para complementar o retrato histórico fiel, a trilha sonora assinada por Rachel Portman majoritariamente comercial resgata alguns intérpretes que marcaram época, além de uma série de composições originais.
Embora seja um filme bonito e preocupado com os detalhes, a fotografia do mesmo não é algo que se destaca. Com muitas cenas internas ou focadas nos estádios, vestiários e dormitórios, não tem muito como ser um primor em fotografia, né. Mas ainda assim, dá pra perceber que o olhar de quem fez essa parte foi muito cuidadoso com a fidelidade e em manter uma paleta de cores que respirasse história.
"Raça" é um cuidadoso retrato histórico de um homem e uma época.
Assim, "Raça" é, de fato, um filme belíssimo em todos os sentidos, que passa num instante e nos deixa com aquela sensação de termos visto um bom filme, e aquele amargo na boca por não poder fazer nada pra mudar aquela realidade que fez tantos perecerem.
Por isso, se você é partidário de qualquer tipo de separatismo, preconceito, construção de muros e etc, é seu dever cívico assistir esse filme - e não estou falando só com os norte-americanos.
Jesse Owens nasceu em setembro de 1913 como James Cleveland Owens. O apelido de Jesse surgiu pois, quando pequeno, a família o chamava de JC. Ao dizer o apelido a um professor, esse entendeu "Jesse" ao inves de "JC". A partír daí, nunca mais foi chamado de James. Owens casou-se com Ruth e teve três filhas: Gloria, Beverly e Marlene, morrendo em 1980 de câncer de pulmão. É dono de quatro medalhas olímpicas, todas obtidas em Berlim em 1936. Ficou famoso por ter composto o time de negros e judeus na delegação norte-americana que confrontou o regime nazista. Muitas polêmicas envolvem Jesse Owens e o comandante do estado alemão da época, sobre se Hitler de fato ignorou o corredor norte-americano ou não. Em sua biografia, Jesse diz que compreende a atitude de Hitler, mas o que o magoou mais do que isso foi a reação do próprio presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt, que não enviou sequer uma carta de agradecimento.