A Longa Marcha
Vale a pena ler o livro de Stephen King antes de ver o filme? O que mudou? Novo final?
Stephen King escreveu “A Longa Marcha” ainda na juventude, lá por meados de 1966 e 1967, até mesmo antes de se tornar o mestre do terror que o mundo conhece. E já fica aqui uma curiosidade: esta foi a primeira história que ele escreveu, porém a publicação ocorreu só em 1979, alguns anos após a publicação dos primeiros livros de sucesso do autor, como Carrie (1974), Salem (1975) e O Iluminado (1977).
Assinando como Richard Bachman — justamente para testar como obras um pouco diferentes iriam impactar o público sem o peso de sua fama —, ele criou uma distopia perturbadora, sobre um evento anual chamado "A Longa Marcha", o qual reúne uma centena de jovens, que se inscrevem voluntariamente, e que são obrigados a caminhar sem parar até restar apenas um vivo.
Décadas depois, Francis Lawrence transporta essa premissa para o cinema em “A Longa Marcha: Caminhe ou Morra” — e o resultado é uma conversa fascinante entre duas obras separadas pelo tempo, mas unidas pela mesma angústia existencial. Eu já publiquei minha opinião sobre o filme (e você pode clicar aqui para ler a Crítica do filme A Longa Marcha), abordando os acertos e poucos deslizes da adaptação, mas hoje quero focar na diferença entre as abordagens do texto e da obra audiovisual.
Um livro impossível de largar, A Longa Marcha é uma narrativa distópica sobre uma competição em que os participantes não têm mais nada a perder, além da própria vida. O romance inaugura a nova coleção da Suma que reúne os livros de Richard Bachman, pseudônimo que Stephen King usou para assinar histórias angustiantes e surpreendentes.
O primeiro ponto de destaque é a fidelidade temática. Tanto o livro quanto o filme exploram o mesmo conceito central: a caminhada como metáfora da vida. No papel, King mergulha profundamente nos pensamentos de seu protagonista, criando uma narrativa quase claustrofóbica, de ritmo lento e opressivo. Já no cinema, Lawrence traduz essa imersão em movimento e imagem, substituindo a introspecção literária por uma tensão constante.
A ambientação dos anos 1970 é um elo essencial entre as duas versões. O diretor poderia ter atualizado a trama, mas manteve a época original — uma escolha inteligente. As tecnologias modernas eliminariam o isolamento e a dependência emocional entre os personagens. A ausência de celulares, câmeras pessoais e conexões instantâneas faz com que tudo pareça mais humano, mais cru, mais desesperador.
Uma das principais diferenças está no número de participantes. Enquanto o livro conta com 100 jovens, o filme reduz o grupo para 50. A decisão é prática e narrativa: manter o mesmo volume de personagens tornaria o longa interminável. Essa mudança, porém, não prejudica a história — ao contrário, torna-a mais focada e emocionalmente acessível.
Além das alterações já citadas, o filme também fez mudanças importantes nos personagens e no tom da narrativa. Por exemplo, Raymond Garraty não tem namorada, o que altera algumas memórias, mas ajuda a manter o foco no essencial da trama. O destino de seu pai é apresentado de forma mais marcante, funcionando como motivação clara para que Garraty participe da Longa Marcha — sem revelar demais, isso dá densidade ao personagem e aproxima o público da sua jornada.
Outros ajustes incluem o tom mais contido do filme em relação a palavrões e piadas de cunho sexual, pequenas alterações nas regras da marcha (como a velocidade da caminhada) e ajustes na forma como as advertências funcionam. Para leitores que prezam pela fidelidade, esses detalhes podem chamar a atenção, mas eles são necessários para que a narrativa cinematográfica seja direta, intensa e envolvente.
Outro contraste está na forma como a violência é tratada. No livro, a eliminação dos participantes ocorre de forma seca, quase burocrática. King raramente descreve em detalhes — o horror está na espera, na expectativa. Já no filme, as execuções são explícitas e brutais. A intenção é chocar, sim, mas também deixar clara a monstruosidade do sistema. Ainda assim, há quem prefira a sutileza do texto original.
O ritmo é outro ponto interessante. O livro é exaustivo por natureza — propositalmente. King faz o leitor sentir o cansaço, o peso da caminhada, o tédio e a dor. É uma experiência que exige paciência. O filme, por sua vez, é mais direto. A narrativa é enxuta, os diálogos são pontuais, e a montagem mantém a tensão viva até o fim. Cada formato funciona à sua maneira.
E falando em final: aqui está a grande diferença. O desfecho do livro é ambíguo, filosófico e, para muitos, frustrante. King deixa a interpretação aberta, como se a caminhada nunca terminasse. Já o filme entrega uma conclusão muito mais clara e impactante — um fechamento que honra o percurso e oferece uma catarse emocional poderosa. É raro dizer isso, mas neste caso o final do filme supera o do livro.
Mesmo com todas as alterações, o espírito da obra original é preservado. A camaradagem entre os personagens, o sentimento de solidariedade em meio à competição e o medo de desaparecer sem propósito continuam intactos. A versão cinematográfica não trai o texto — apenas o traduz em outra linguagem, igualmente eficaz.
Além disso, há méritos únicos em cada um. O livro é mais psicológico, mais filosófico, um estudo sobre o sofrimento e a resistência humana. O filme, por sua vez, é uma experiência sensorial e visualmente devastadora, que fala diretamente ao corpo e à emoção. Juntos, eles se complementam: um faz o outro ganhar ainda mais significado.
Por fim, tanto no papel quanto na tela, “A Longa Marcha” segue sendo uma história sobre a humanidade diante do absurdo. É um lembrete de que seguimos caminhando, mesmo sem saber por quê — e talvez seja essa a beleza (ou o horror) da vida. Ler o livro e assistir ao filme é percorrer dois caminhos diferentes para o mesmo destino.
Um livro impossível de largar, A Longa Marcha é uma narrativa distópica sobre uma competição em que os participantes não têm mais nada a perder, além da própria vida. O romance inaugura a nova coleção da Suma que reúne os livros de Richard Bachman, pseudônimo que Stephen King usou para assinar histórias angustiantes e surpreendentes.
Até onde você consegue ir?