Crítica A Longa Marcha
Quando a estrada leva para o horror
O jovem Raymond (Cooper Hoffman) está prestes a participar de uma famosa prova anual de resistência. Ele é apenas um entre dezenas de adolescentes dispostos a encarar “A Longa Marcha”, uma competição em que os participantes devem manter uma velocidade mínima de caminhada — ou levam um tiro. O evento atrai multidões e termina apenas quando restar um sobrevivente. Até onde Raymond está disposto a ir?
Acima está a sinopse oficial de “A Longa Marcha”, mais um longa-metragem baseado em uma obra de Stephen King. Pelo breve resumo, fica o questionamento: um filme em que os personagens simplesmente caminham sem parar pode realmente prender a nossa atenção? Como criar tensão em uma história que depende quase inteiramente de diálogos e longos silêncios?
Fonte da imagem: Divulgação/Paris Filmes
Sem dúvidas, esta era uma missão quase impossível. Não por acaso, o próprio Mike Flanagan — diretor do excelente filme “A Vida de Chuck” (outra adaptação recente de Stephen King) —, mencionou que estava muito interessado em ver fariam essa adaptação de The Long Walk, sugerindo que era muito complexa essa tarefa. E, de fato, parecia um trabalho fadado ao fracasso — até agora.
Antes de continuar com meus argumentos, deixo abaixo a playlist da trilha sonora oficial do filme (que depois comentarei sobre) para você sentir a emoção da Longa Marcha enquanto lê esta crítica. Aperte o play e aproveite a jornada!
“A Longa Marcha: Caminhe ou Morra” é aquele tipo de filme que não apenas te prende pela tensão, mas te consome lentamente — assim como a jornada de seus personagens. Baseado na obra homônima de Stephen King, escrita sob o pseudônimo Richard Bachman, o longa dirigido por Francis Lawrence (que você provavelmente conhece de “Eu Sou a Lenda”, “Jogos Vorazes” e “Constantine”) surpreende por conseguir transformar uma narrativa essencialmente introspectiva em uma experiência cinematográfica angustiante, intensa e emocionalmente devastadora.
E ainda antes de entrar em detalhes, se você já leu o livro (ou pretende ler) e está se perguntando se tem muitas diferenças entre o obra literária e o filme, a resposta é sim! No entanto, eu considero que todas as mudanças foram muito justificáveis para a dinâmica do longa funcionar melhor e nada do que foi alterado altera significativamente o andar da carruagem. Todavia, para entender melhor essas adaptações, recomendo que você clique aqui para ler meu texto comparando o livro A Longa Marcha e o longa-metragem.
A Longa Marcha vale a pena?
A Longa Marcha é uma adaptação ousada de Stephen King que impressiona com direção precisa, atuações marcantes de Cooper Hoffman e David Jonsson, tensão constante e final surpreendente, transformando a caminhada mortal em uma experiência cinematográfica intensa.
Logo de início, o filme estabelece um tom sombrio e realista. A ambientação dos anos 1970 é impecável — uma decisão acertada que preserva a essência da história original. Trazer essa trama para os tempos atuais seria uma tarefa quase impossível, não só pelas diferenças tecnológicas, mas porque o conceito da “Longa Marcha” depende muito dessa atmosfera de isolamento, vigilância militar e ausência de questionamento popular — sem dúvidas que uma história similar ambientada em tempos recentes seria extremamente complexa de produzir.
O roteiro é eficiente em apresentar os personagens sem precisar recorrer à exposição excessiva ou muitas cenas paralelas (os flashbacks são bem raros aqui). Em poucos diálogos, entendemos suas motivações, seus medos e suas esperanças. Esse dinamismo faz com que o público se conecte rapidamente, o que torna cada perda ainda mais dolorosa. A camaradagem que se forma entre os participantes é o que dá alma ao filme — uma amizade improvável em meio à certeza da morte.
Visualmente, “A Longa Marcha” é austero e belíssimo. As paisagens vazias, a fotografia fria e os contrastes de luz e sombra criam um cenário que reflete o esgotamento físico e psicológico dos personagens. Cada passo dado pelos jovens carrega peso — e cada rosto abatido parece gritar por redenção.
Fonte da imagem: Divulgação/Paris Filmes
Aliás, falando em esgotamento, eu acho que é quase inevitável ver este filme (ou mesmo ler a obra original) e não ficar se questionando: mas será mesmo que é possível caminhar centenas de quilômetros sem parar? Alguém já fez isso no mundo real? Bom, eu fui pesquisar e, segundo o site Live Science, tudo depende da definição de "caminhar sem parar".
No conteúdo publicado em fevereiro de 2025, o site informa que Dean Karnazes detém o recorde não oficial da corrida mais longa sem dormir, com 563 km (350 milhas), que ele correu em três dias e meio em 2005. Já em 2023, o ultramaratonista Harvey Lewis estabeleceu um novo recorde em um tipo de corrida de longa distância chamada Backyard ultra. Nesse tipo de competição, os corredores completam um circuito de 6,7 km (4,17 milhas) a cada hora, até que reste apenas um corredor em pé. Lewis correu 108 desses circuitos no equivalente a 4,5 dias, totalizando 724 km (450 milhas), com apenas alguns minutos ao final de cada hora para descansar antes de recomeçar.
Voltando às considerações sobre o filme, mas ainda mantendo nesse tópico, vale ressaltar como a direção de Francis Lawrence é precisa e corajosa. O ritmo é constante e exaustivo, até porque realmente precisa ser, já que os participantes devem continuar andando — sem sequer uma pausa para amarrar os cadarços — em uma velocidade superior a 5 km/h.
A tensão dos enquadramentos é palpável, e cada pausa ou silêncio é tão importante quanto os momentos de violência. O cineasta equilibra a brutalidade do conceito com uma sensibilidade inesperada. Mesmo nas cenas mais duras, há espaço para empatia — e é aí que o filme mais se destaca: ao lembrar que, antes de competidores, aqueles jovens são pessoas.
Para obter êxito em sua realização, o filme conta com um elenco diversificado — como exige a história original — e repleto de talentos inesperados. Cooper Hoffman (filho do lendário Philip Seymour Hoffman) entrega uma atuação impressionante como Raymond, o jovem que decide participar da prova mortal e que serve como fio condutor da narrativa.
Ainda assim, quem muitas vezes se apropria das atenções, de forma quase natural ao seu personagem, é David Jonsson, em uma performance carregada de nuances. Ele é o coração emocional do filme, com uma presença magnética, vulnerável e intensa.
Somando-se aos dois, Ben Wang e Tut Nyuot completam o núcleo principal da história — e é o dinamismo entre eles que sustenta essa longa jornada. Os diálogos, que começam de forma curiosa, ganham peso e cumplicidade ao longo do caminho, criando momentos de emoção genuína que tornam a caminhada mais humana do que competitiva.
Já Charlie Plummer adiciona um toque de insanidade que vem em boa hora: seu personagem quebra o ritmo da caminhada com momentos de desconforto e tensão, dando ao longa uma energia imprevisível. E, para completar o elenco, Mark Hamill surge em um papel secundário, quase caricatural, mas eficaz — o veterano cria uma figura repulsiva que simboliza o sistema desumano por trás da competição. Ponto para o Jedi.
Fonte da imagem: Divulgação/Paris Filmes
Vale dizer que o filme é violento — e não pouco. Algumas execuções são gráficas e viscerais, o que certamente vai dividir opiniões. Pessoalmente, achei que em alguns momentos o excesso poderia ser substituído pela sugestão. O medo do que não se vê é, muitas vezes, mais eficaz. Ainda assim, é inegável que a violência faz parte do impacto que a história quer causar. Afinal, estamos diante de uma distopia cruel, em que a própria vida é o prêmio final.
A trilha sonora de Jeremiah Fraites, que mencionei no começo do texto, é outro acerto notável. Minimalista, inquietante e melancólica, ela pontua a narrativa com delicadeza e cria uma atmosfera de urgência e desespero. As notas, às vezes cadenciadas e, em outras situações, longas e tensas funcionam como uma espécie de batimento cardíaco coletivo — uma lembrança constante de que o tempo (e a distância) estão sempre correndo.
O final, sem dúvidas, é um dos grandes trunfos da adaptação. Ao contrário do livro, que opta por um encerramento mais ambíguo e filosófico, o filme entrega algo mais ousado e emocionalmente satisfatório. Há coragem e justiça em sua conclusão, um fechamento que dá sentido à longa caminhada — tanto literal quanto simbólica.
No fim das contas, “A Longa Marcha: Caminhe ou Morra” é mais do que um filme de terror ou suspense. É uma reflexão amarga sobre propósito, sacrifício e a busca insaciável por reconhecimento. Francis Lawrence e o roteirista JT Mollner conseguiram o que Mike Flanagan — e boa parte dos fãs — achavam impossível: adaptar “A Longa Marcha” sem perder sua alma. O resultado é uma das melhores e mais intensas experiências cinematográficas do ano.
Até onde você consegue ir?