Crítica Armageddon Time
Fim do Mundo é uma questão de perspectiva
Alguns filmes não são idealizados para te contar uma história com começo, meio e fim. Longe disso. Muitas vezes, as obras cinematográficas são pensadas para plantar pequenas sementes sobre um ou vários temas, para que você reflita e tire suas próprias conclusões. Não é o padrão de Hollywood, porém tais filmes existem e são muito prestigiados pela crítica.
É o caso de “Armageddon Time”, que, pelo nome, parece um filme de fim do mundo, mas que, no fundo, é uma obra parcialmente biográfica do diretor James Gray. Uma película que retrata um trecho de sua vida, num drama que tenta costurar dramas familiares, questões sociais e como isso reflete no sonho americano.
Vendido com um elenco que inclui Anthony Hopkins, Anne Hathaway e Jeremy Strong, o filme, na verdade, é protagonizado por Banks Repeta, que interpreta Paul Graff, um garoto branco, judeu e de família rica. Essas caraterísticas sobre a realidade de Paul são fundamentais, pois o filme pretende debater privilégios e preconceitos.
A rotina de Paul não tem dificuldades realmente significativas (no que a gente chama de "classe média sofre"), mas a mentalidade do jovem é confrontada quando se depara com situações de racismo, ainda que não direcionadas a ele; os vieses diferentes dentro de sua família, que inevitavelmente confundem sua mente; e as incertezas sobre o futuro, que acabam tendo impacto imediato na vida.
Trata-se de um drama pessoal que tenta mostrar o conflito geracional, principalmente na realidade americana na década de 1980, que prometia o “sonho americano”, o qual, para muitos, foi apenas uma ilusão. Ainda que distante da visão que os brasileiros têm quanto às dificuldades na vida, há aqui pontos-chave válidos para reflexão. Um bom drama, apesar de não ter ponto final.
Primeiro de tudo, é importante ressaltar que em questões técnicas, não há dúvidas que James Gray é muito cuidadoso no que faz. Você talvez já conheça a competência dele de filmes como “Ad Astra: Rumo às Estrelas” (ficção contemplativa e que agrada se o espectador for paciente), “Z: A Cidade Perdida” (um bom filme de aventura) ou de “Era Uma vez em Nova York” (um drama com tema relevante).
Então, nem é preciso muitos elogios para a direção, fotografia, edição e trilha sonora, porque “Armageddon Time” é um filme bem redondinho nesses aspectos. Assim, o que realmente importa é falarmos de dois aspectos: roteiro e atuações. Ao longo dos próximos parágrafos, vou mesclar tais considerações.
Bom, para falar sobre “Armageddon Time” é preciso uma dose de filosofia. Relaxa, não vou divagar — não muito, pelo menos. O ponto é que ele foge do padrão de dramas que dão uma contextualização e desenvolvem uma história por cima. Como eu disse previamente: não há começo, meio e fim. Trata-se de um recorte da vida do protagonista com pontos relevantes que permeiam esta curta trajetória.
Aqui, James Gray tenta mostrar que a história como um todo são as diferentes contextualizações que diferentes protagonistas têm a respeito da sociedade e do tempo em que elas vivem. Se hoje você acha que o mundo parece estagnado nas mesmas concepções, é porque você não está enxergando o grande panorama.
Seus avós ou seus pais provavelmente já viram muitas transformações do mundo e talvez vejam um mundo muito diferente de duas, três ou mais décadas atrás — vai dizer que seus avós nunca começaram algumas frases com a seguinte construção: “não, porque no meu tempo era diferente”.
Sim, era tudo diferente mesmo. O mundo já foi mais racista, mais machista e mais preconceituoso. Certamente ele ainda está longe de ser o ideal para todos, porém há uma transição constante entre gerações. E, sempre vale recapitular, a percepção de mundo depende do ponto de vista, então para muitos o mundo é um lugar horrível.
É importante entender que se para nós, adultos, é difícil combater estereótipos e se opor aos retrocessos, imagine como é para uma criança perceber injustiças e tentar lidar com elas sem ter entendimento de mundo ou de futuro. Este é o xis da questão, já que temos aqui um protagonista de 10 ou 12 anos que começa a perceber incoerências da sociedade e, em meio a opiniões divergentes, tenta achar um norte.
O jovem Paul Graff tem dificuldades de concentração na escola, bem como, por vezes, ele divaga ao pensar sobre sua carreira como um grande artista. Para sua felicidade ou infelicidade (entraremos em detalhe sobre isso posteriormente), ele encontra, em meio ao caos, um amigo, Johnny Davies (Jaylin Webb), que compartilha de um dilema: enfrentar a vida sem saber o que é a vida.
Vamos combinar que muitos pais não têm uma noção realista do mundo. Seja por terem recebido uma educação simplista ou por nunca questionarem nada, a falta de atenção na educação dos filhos pode ser uma constante de geração em geração. E o que uma criança faz diante de tantos dilemas? Besteira, é claro!
Este é justamente o rumo que toma a trama do filme: uma revolução por parte das crianças, regado por desobediência e confrontamento. E, então, apesar de compartilharem sentimentos na amizade e pensamentos bagunçados, há um mundo de diferenças separando as realidades de Paul e Johnny.
Paul é um garoto branco, de classe média e que tem situações de desconforto em casa, como seu pai debochando de seu futuro como artista. Felizmente, Paul tem o amparo do avô, Aaron Rabinowitz (Anthony Hopkins), que não apenas é muito sábio, como respeitada em sua família e alguém que apoia o garoto.
Já o pequeno Johnny é negro, pobre e tem situações complexas em casa — isso para não dizer situações extremas. A verdade é que ele deveria morar com sua avó, mas acaba fugindo de casa para não ser enviado para um lar adotivo, já que a avó está doente e não tem condições de cuidar propriamente dele.
Aos poucos, Paul percebe as situações de racismo enfrentadas pelo amigo, ataques que vêm do professor que o pune constantemente, ou dos colegas e da sociedade como um todo. A amizade dos dois passa por muitas provações quando Paul muda de escola e ele se afasta de Johnny principalmente pela influência dos novos colegas.
A solução? O apoio do avô Aaron, que sofreu preconceito durante boa parte da vida pelo simples fato de ser judeu. No entanto, há outras situações que se desdobram e mostram ao pequeno Paul que o futuro de sucesso, o tal sonho americano, talvez não seja para todos e que a sociedade geralmente trabalha contra os desfavorecidos.
E se você rolar a página um pouco verá que o ano de publicação desta crítica é o mesmo de lançamento do filme: 2022. No entanto, a ambientação de “Armageddon Time” é lá no início da década de 1980, portanto temos aqui uma janela de quase 40 anos que prova que as questões raciais, as injustiças e os preconceitos continuam fortes e precisam ser combatidos e debatidos. Não por acaso este filme existe.
Aliás, pausa para elogiar as excelentes atuações de Banks Repeta e Jaylin Webb. Se para o grande público já é complicado absorver as ideias do filme, é preciso de muito talento por parte do elenco mirim para conceber as minúcias e incorporar personagens complexos que talvez estejam bem distantes de suas realidades.
Por outro lado, é interessante como os adultos têm participação enxuta neste filme. Assim, apesar de vender muito com o nome dos famosos, todos têm papeis praticamente secundários, mas é claro que as atuações de Anne Hathaway e Jeremy Strong são fortes (com o perdão do trocadilho). No entanto, como de praxe, é Anthony Hopkins que realmente se destaca, tanto por ter maior relevância na trama quanto por ser um ator fenomenal.
Enfime, chegamos ao grand finale, que não é tão grand e talvez não seja um finale. Eu sei que a sensação para muitos ao fim do filme pode ser que “nada acontece”, já que o roteiro acaba de forma brusca e sem entregar uma moral. Bom, eis a moral: a luta por uma sociedade melhor para todos não é uma obrigação do filme, já que mesmo uma odisseia talvez não seria suficiente para resolver as injustiças sociais.
Contudo, é importante relembrar que a concepção que temos de filmes enquanto puro entretenimento não é uma máxima. Aos que gostam de chorar com dramas e ver tramas com finais felizes, há uma variedade de outras obras. Só que este não é o tipo de filme que “Armageddon Time” quer ser e, de vez em quando, é bom pensar fora da caixinha.
O Fim de uma Era. O Começo de Tudo.