Crítica do filme Ferrugem
Cuidado com o que compartilha
Quando você compartilha imagens íntimas, você também compartilha consequências. Esse assunto enfrentado por muitos pais, professores e adolescentes torna “Ferrugem”, dirigido por Aly Muritiba, um filme universal. O conteúdo compartilhado pode gerar consequências bem graves, como no caso abordado no longa e em histórias que são vistas diariamente na internet.
Desde sua estreia no Festival de Sundance em janeiro e mais recentemente ganhando os holofotes após levar o Kikito de Melhor Filme no Festival de Gramado, “Ferrugem” tem como objetivo principal gerar discussões a respeito do tema.
A campanha “#eAgoraqueVoceSabe” foi criada para que essa discussão seja centralizada, compartilhando os possíveis problemas causados pelo compartilhamento de conteúdos íntimos, além dos cuidados para não ser vítima de “revenge porn”.
A trama já está apresentada no trailer, que já serve como ponto de partida para uma discussão mais detalhada, mas o interessante é ver como as consequências das ações dos personagens são abordadas. O roteiro é assinado por Muritiba e Jessica Candal, que dividem o filme em duas partes, a primeira focada na jovem Tati (Tiffanny Dopke) que teve um vídeo íntimo vazado e a segunda em todas as consequências dessa atitude.
A direção de fotografia de Rui Pocas entrega o tom necessário para cada momento da história, alternando entre explosão de cores e algo quase monocromático. Mas o brilho fica por conta do desenho de som de Alexandre Rogoski, criando uma sutil atmosfera angustiante complementada por longos momentos de silêncio mórbido.
A primeira parte é decididamente feita pensando nos adolescentes, com um ritmo acelerado, muita cor e música, mas que abruptamente se torna um drama familiar carregado de tons escuros e longos momentos silenciosos na segunda parte. A perspectiva da história passa para Renet (Giovanni de Lorenzi), um garoto esquisito e depressivo, que parece estar bastante abalado por tudo que aconteceu com Tati.
Enquanto a primeira parte trilha o abrupto caminho auto-destrutivo de Tatiana, a segunda parte revela momentos cotidianos da vida de Renet, com a culpa corroendo e se arrastando lentamente, tal como ferrugem.
Sua esquisitice é reflexo do divórcio de seus pais e todo esse cenário aliado a falha de comunicação é exposto com Renet se recusando a falar com sua mãe Raquel (Clarissa Kiste) e seu pai/professor Davi (Enrique Diaz) que está aprendendo a exercer a função de pai desde que Raquel o deixou.
Raquel representa uma mulher que busca seu espaço sem ter medo de ser feliz. Depois de se dedicar exclusivamente aos filhos durante 17 anos, parte em busca de tudo que ela abandonou antes de formar uma família. Ela não possui o tradicional sentimento de culpa por nada disso, muito menos em deixar a guarda dos filhos, que ela deixa bem claro que ama muito, com o ex-marido. Ela é a personagem mais sensata e que aparece para movimentar a trama, e consequentemente representa diversos tabus a respeito de família e do papel da mulher na sociedade e na maioria dos filmes.
Um dos momentos mais geniais é a conversa entre Raquel e Davi dentro do carro. A cena toda é gravada do banco de trás do carro, e assim como toda a segunda parte, é bastante fechada e intimista. Chove bastante e o vidro do carro começa a embaçar. Enquanto Davi dirige, Raquel tenta conversar para tentar resolver ou pelo menos entender o que está acontecendo durante o tempo em que ela esteve longe.
Entre remorsos e lembranças do passado, Raquel fala que Davi nunca a enxergou de verdade, e por isso seu novo marido é diferente. Enquanto várias coisas são discutidas e esclarecidas, ao final da cena o vidro está desembaçado e a chuva parou. Esse é o tipo de cuidado, tanto na direção quanto roteiro, que tornam Aly Muritiba tão respeitado.
A quebra no tom da narrativa infelizmente resulta em um enredo desnecessariamente complicado e insuportavelmente previsível. É claro que era exatamente essa a ideia a ser passada, a noção de responsabilidade, a comunicação aberta entre pais e filhos e também todas as formas erradas de lidar com isso, como tentar acobertar os erros dos próprios filhos com mentiras.
A premissa é bem cativante, mas o segundo ato é tão lento que retira boa parte do drama. Por outro lado, não acaba de uma forma ainda mais sombria, servindo quase como uma lição para ser transmitida nas escolas e evitar que esse tipo de situação continue se perpetuando. Nenhuma das cenas polêmicas são mostradas na íntegra, já que o objetivo é conscientizar e não chocar, mais um ponto positivo para que o filme sirva de ponto de apoio para discussões como bullying, revenge porn e atos semelhantes.
Apesar da proposta ser interessante, alguns detalhes impedem “Ferrugem” de ser um filme categórico e abafam seu impacto. A própria disparidade de tempo entre os dois atos, mesmo construindo bem o clima opressivo com os enquadramentos apertados e todas as boas ideias já citadas, a primeira parte não dá a profundidade necessária para que haja mais tempo de empatia com a protagonista.
Talvez a escolha seja proposital, já que essa é a história de diversas meninas que passam por essa situação, mas a distância emocional persiste e a superficialidade dos diálogos colabora para aumentar essa sensação. De forma alguma os atores ou o roteiro são fracos, mas falta uma certa audácia nos confrontos entre personagens, mas acaba sendo mais didático que de fato cinematográfico.
Sem dúvida “Ferrugem” merece todo o destaque e prêmios que já conquistou, principalmente por mostrar um Brasil diferente do esperado, além de debater um tema sempre relevante, propondo reflexões interessantes sobre o tema, mas não impacta tanto quanto poderia. Ainda assim, é recomendadíssimo para todas as idades e público, e que o cinema nacional continue com esse nível de abordagem.