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Crítica O Agente Secreto | Um grande filme com múltiplas personalidades e final questionável

Será que “O Agente Secreto” tem o cacife para entrar na corrida do Oscar? Por que todo mundo está falando tanto sobre esse filme?

Essas são perguntas inevitáveis quando se fala da nova obra de Kleber Mendonça Filho — uma coprodução entre Brasil, França, Holanda e Alemanha que chegou com status de grande evento. E não é por menos: o diretor de Bacurau entrega aqui um projeto ousado, denso e repleto de camadas.

A trama acompanha Marcelo (Wagner Moura), um professor de tecnologia que busca refúgio em Recife, em plena ditadura militar, na tentativa de escapar de um passado conturbado. Só que o que parecia um recomeço rapidamente se torna uma armadilha: a cidade o observa, os vizinhos o vigiam, e o que era refúgio vira paranoia. Um retrato de um Brasil sufocado, onde ninguém é completamente livre — nem mesmo quem tenta fugir.

oagentesecreto01 33027Fonte da imagem: Divulgacão/Vitrine Filmes

Com cerca de 2h40 de duração, “O Agente Secreto” pode parecer uma maratona, mas o tempo passa rápido. A narrativa é envolvente, a montagem dinâmica, e o filme tem aquele raro poder de nos fazer perder a noção do relógio. É entretenimento com alma e densidade, e mesmo quando erra, erra com estilo.

“O Agente Secreto” expõe a paranoia e o controle durante a ditadura sem recorrer a discursos tão diretos. Em cada vizinho, um espião em potencial; em cada janela, um olhar vigilante. Kleber Mendonça Filho constrói, com sutileza e precisão, um retrato de insegurança, ausências forçadas e temores silenciosos.

O Agente Secreto vale a pena?

Vale, e muito! Kleber Mendonça Filho entrega uma experiência rara no cinema brasileiro recente: ousada, provocante e com uma força autoral admirável. É um filme que mistura gêneros, desafia convenções e nos faz refletir, mesmo que, no fim, tropece em seu próprio excesso. A ambientação é fantástica, as atuações são de altíssimo nível e o conjunto técnico é impressionante. Ainda assim, O Agente Secreto sofre de uma “crise de identidade”, oscilando entre o thriller político, o drama, a comédia e outros gêneros. Essa mistura dá sabor, mas também confunde.

Um filme com mil rostos e uma só essência

É curioso: apesar do título, não existe exatamente um “agente secreto” no sentido literal. Marcelo é um homem comum, um fugitivo tentando sobreviver. A meu ver, me parece que “secreto” aqui é mais simbólico — refere-se às identidades inventadas, às máscaras que usamos para existir em meio ao medo.

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O roteiro, contado de forma não linear, brinca com o tempo e com as percepções do espectador. A cada novo núcleo, o filme muda de tom — em um momento há humor, no outro violência gráfica; em seguida, drama político ou até pitadas de romance. A sensação é de estar vendo várias obras dentro de uma só, uma colcha de retalhos costurada com firmeza, mas nem sempre com precisão.

Mendonça Filho parece fascinado por essa mistura — e repete aqui o gosto pela violência estilizada que já vimos em Bacurau. Há cenas fortes, explícitas, que dividem opiniões. Algumas são marcantes; outras, completamente gratuitas. O infame arco “da perna”, por exemplo, soa mais como delírio do que como parte orgânica do enredo.

Ainda assim, o filme brilha em seu elenco. Wagner Moura está fenomenal. Sua entrega é visceral, cheia de nuances — o medo, a culpa, o cansaço, o humor sutil. Não à toa, levou o prêmio de Melhor Ator em Cannes 2025.

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Tânia Maria rouba a cena como Sebastiana, a vizinha espirituosa que traz leveza sem forçar o humor. Maria Fernanda Cândido, Hermila Guedes, Robério Diógenes, Gabriel Leone e Roney Villela completam o elenco com performances consistentes, dando corpo a um mosaico de personagens intensos e inesquecíveis.

A força técnica por trás da confusão narrativa

Se há algo inquestionável em O Agente Secreto, é sua excelência técnica. A recriação do Recife de 1977 é impressionante — dos figurinos à frota de carros, das construções antigas aos pequenos detalhes dos cenários. É uma viagem no tempo feita com minúcia e paixão. Kleber Mendonça, nascido na capital pernambucana, conhece cada viela e esquina, e esse olhar pessoal dá vida ao cenário.

A fotografia é primorosa. Há um cuidado meticuloso com as cores, com a luz e com o contraste entre o calor do Recife e o frio psicológico da paranoia. Cada plano parece pensado para intensificar o desconforto, a sensação de que algo sempre espreita nas sombras. Claro, há um reforço cinematográfico graças à gravação em 35 mm com lentes Panavision de formato anamórfico.

oagentesecreto04 c5776Fonte da imagem: Divulgacão/Vitrine Filmes

A trilha sonora é outro triunfo. O filme utiliza canções da época de forma diegética, ou seja, inseridas no próprio universo da narrativa. Somos apresentados aos sons quando os personagens ligam o rádio do carro, colocam um vinil no toca-discos ou apenas ouvem o ambiente ao redor. A música, aqui, não é apenas trilha: é personagem. E cada escolha tem peso narrativo.

Se você viu o trailer de O Agente Secreto, provavelmente percebeu que a música já roubava a atenção naquela prévia. A faixa usada é “Guerra E Pace, Pollo E Brace”, de Ennio Morricone — composta originalmente para o filme Obrigado, Tia (Grazie Zia, 1968) — e, no longa, ela cria um clima de tensão hipnótica.

Particularmente, gostei muito da cena embalada por “Retiro: Tema de Amor Número 3”, do Conjunto Concerto Viola. Aqui, a letra parece também funcionar como elemento narrativo, sendo mais uma camada inteligente do filme, que convida o espectador a reparar em cada detalhe. A canção acrescenta um lirismo melancólico e oferece à narrativa um sopro de humanidade.

No subtexto, “O Agente Secreto” fala sobre ausências, abuso de poder e os abusos da ditadura. O diretor nunca entrega discursos diretos, mas sugere com símbolos, gestos e silêncios, o trauma coletivo de uma nação — que, na narrativa, teme o presente, enquanto que a plateia certamente sabe que esse passado sombrio muitas vezes se insinua em situações do tempo presente. É uma obra que nos lembra, com sutileza e brutalidade, que esquecer é permitir que os mesmos erros retornem.

Infelizmente, essa escalada de tensão desagua num final que decepciona.

Depois de mais de duas horas de construção de personagem e drama, o desfecho é abrupto, superficial e inconclusivo. O clímax se esvazia antes de acontecer. Não é que falte explicação, mas falta coragem narrativa para encerrar o que o filme começou com tanta força. O resultado é um fim que deixa um vazio. Não o bom vazio reflexivo, mas o de frustração.

Um candidato brasileiro de peso no Oscar

Depois do sucesso de Ainda Estou Aqui (que rendeu o primeiro Oscar ao Brasil), “O Agente Secreto” chega com expectativas altíssimas. Foi escolhido para representar o país na disputa pelo Oscar 2026, e não é difícil entender por quê: é uma obra tecnicamente impecável, com alma autoral e um protagonista premiado.

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Wagner Moura e Kleber Mendonça Filho já saíram de Cannes com prêmios de Melhor Ator e Melhor Diretor, respectivamente — um feito histórico. Ainda assim, o Oscar é um território imprevisível: filmes estrangeiros raramente conquistam múltiplas indicações. Mesmo assim, há boas chances de o nome de Wagner aparecer entre os indicados a Melhor Ator, assim como Kleber pode surpreender na categoria de Direção. Vamos ver o que vem por aí, não dá pra saber ainda.

Conflituoso, mas intenso e audaz

O Agente Secreto” é um espetáculo de cinema! Ambicioso, elegante e envolvente.

É também uma obra que se perde em suas próprias ideias, que tenta dizer muito e, às vezes, acaba mostrando demais. Ainda assim, é um filme que merece ser visto, debatido e celebrado. Um retrato inquietante de um país dividido, feito com arte e coragem.

No fim das contas, Kleber Mendonça Filho continua sendo o mesmo cineasta inquieto de sempre: aquele que provoca, mesmo quando deixa sem respostas.

Crítica A Própria Carne | Tema o desconhecido! Um filme de terror brasileiro que arrepia pela atmosfera sinistra!

Em pleno desfecho da Guerra do Paraguai, três soldados desertores encontram refúgio improvável em uma casa perdida no meio da mata. Exaustos, desesperados e necessitando de ajuda médica, eles acreditam ter escapado da violência do front. Contudo, a aparente tranquilidade logo se desfaz quando percebem que os moradores dali — um fazendeiro enigmático e uma jovem silenciosa — ocultam segredos tão sombrios quanto a própria guerra. O que começa como busca por abrigo rapidamente se transforma em um mergulho sinistro nas profundezas do medo e da loucura.

A Própria Carne chega aos cinemas como um projeto independente idealizado por Deive Pazos e Alexandre Ottoni, os nomes por trás do Jovem Nerd, em parceria com Ian SBF, que divide o roteiro e assume a direção, consolidando a transição de diretor de alguns projetos do Porta dos Fundos para uma obra de terror cinematográfica ambiciosa.

Desde o início, o projeto nasceu sob a bandeira da coragem e da confiança na própria comunidade. Muito além do investimento dos criadores, o filme ganhou vida graças a uma campanha de financiamento coletivo que reuniu centenas de fãs dispostos a colocar dinheiro próprio na realização de um terror nacional ousado. O resultado representa não apenas um marco de produção independente, mas também a transição de nomes que já conquistaram o público na internet para uma narrativa madura, sombria e ambiciosa nas telonas.

Logo de início, destaca-se Luiz Carlos Persy, cuja presença em cena domina a atmosfera com magnetismo absoluto. Muitos talvez não reconheçam seu rosto, mas dificilmente esquecerão sua voz. Persy emprestou seu talento a personagens icônicos da dublagem brasileira, como Lord Voldemort em Harry Potter, Gandalf em O Senhor dos Anéis e Joel em The Last of Us. Sua capacidade vocal já era temida e reverenciada; agora, sua presença física encontra um papel à altura, compondo um antagonista que flutua entre o real e o inexplicável.

apropriacarne1 612ddFonte da imagem: Divulgação/Nonsense Creation

É inevitável abordar um ponto sensível: o preconceito histórico do público brasileiro com o cinema nacional, sobretudo o terror. A falta de verba já rendeu obras honestas, porém limitadas em efeitos ou maquiagem, alimentando uma injusta desconfiança sobre nosso potencial no gênero.

Contudo, o Brasil sempre abrigou um folclore rico, uma história sangrenta e um imaginário cultural único. Faltava apenas um filme disposto a reivindicar essas raízes com ambição. A Própria Carne surge justamente como esse divisor de águas. Será que vale a pena ver A Própria Carne? Estaríamos diante de uma virada para o terror brasileiro? A resposta, felizmente, é promissora.

A Própria Carne vale a pena?

A Própria Carne surpreende ao unir terror histórico, atmosfera claustrofóbica e uma construção narrativa gradual, inquietante e madura. Com destaque para Luiz Carlos Persy, direção segura de Ian SBF e um capricho técnico que ajuda na construção do clima de horror, o filme entrega tensão constante, ambientação impecável e um final impactante. Um terror brasileiro que merece ser visto no cinema.

Terror ancestral em solo brasileiro

A premissa bebe de fontes históricas, situando o espectador em um Brasil antigo, violento e real — o que dá ao filme um ar quase documental no início. A casa isolada e o estranho senhor que a habita remetem ao arquétipo clássico do “horror rural”, porém o longa nunca se acomoda em clichês. O isolamento, a fragilidade dos soldados e o silêncio opressivo constroem um ambiente onde o desconhecido sempre parece observar — ainda que escondido na escuridão.

apropriacarne6 30ecdFonte da imagem: Divulgação/Nonsense Creation

A ambientação pré-eletricidade é decisiva: a luz de velas, os cômodos estreitos, as sombras que engolem metade do quadro e os sons abafados da floresta criam sufocamento contínuo. Cada canto da residência parece esconder algo vivo e perigoso, enquanto o lado externo oferece pouco alívio com sua mata fechada, cheia de ruídos, galhos estalando e sombras que parecem querer engolir o espectador. Muito terror aqui nasce da sugestão — e o filme entende que, muitas vezes, o que não vemos é mais aterrorizante do que o que é mostrado.

A narrativa alternada entre os desertores mantém o suspense em alta, revelando pedaços do mistério com parcimônia. Nada aqui se entrega de imediato. Os diálogos fluem com naturalidade, e mesmo quando o vilão flerta com um tom quase ritualístico — algo entre conto folclórico e delírio místico — isso sustenta o clima de fábula sombria, ecoando tradições do horror literário.

Há momentos que remetem às histórias de H. P. Lovecraft, não pela explicação explícita do desconhecido, mas pelo cuidado na construção do ambiente e pelo uso de pequenos detalhes que alimentam o desconforto. Cada ruído abafado, cada olhar desconfiado e cada elemento do cenário opera para insinuar que a ameaça é maior do que o espectador consegue compreender de imediato, reforçando uma atmosfera sufocante e meticulosamente arquitetada.

apropriacarne2 a05f2Fonte da imagem: Divulgação/Nonsense Creation

O elenco entrega com força, e apesar de nomes menos conhecidos do grande público, cada personagem parece carregado de história, trauma e medo real. Luiz Carlos Persy, por sua vez, domina o filme. Sua postura, seu olhar e sua cadência ao falar imprimem autoridade e terror sem esforço. Ele é a engrenagem que move o mistério e sustenta o horror até o último segundo.

Terror visceral, estética precisa e sonorização sufocante

A construção técnica de A Própria Carne impressiona. Figurino, direção de arte e maquiagem trabalham com rigor para inserir o espectador naquele período. As roupas gastas, a sujeira, o sangue seco, os tecidos ásperos, tudo contribui para a imersão total. A fotografia aposta em profundidade, contraste e escuridão — e a escuridão aqui é personagem. O jogo entre o que se vê e o que se insinua mantém a mente inquieta. A brutalidade, quando surge, é crua e visceral, sem exageros gratuitos. Não é um gore carnavalesco, mas o suficiente para deixar a pele arrepiada e o estômago tenso.

A sonoplastia merece elogios particulares. Cada ruído da mata, cada respiração, cada rangido constrói tensão. A trilha de Bruno Gouveia amplifica o desconforto com cordas distorcidas, notas longas e ruídos que parecem ecoar de um pesadelo distante. Som e silêncio trabalham juntos, preparando o terreno emocional para o espectador ser surpreendido.

apropriacarne3 84b48Fonte da imagem: Divulgação/Nonsense Creation

No desfecho, o filme entrega sua carta final com coragem. O clímax não só recompensa a construção lenta, como expande o escopo do terror para algo maior, mais ancestral, mais perturbador. Há um toque inevitável de horror cósmico, aquele medo do indescritível que arrasta o público para o abismo junto com os personagens.

A Própria Carne não é apenas um excelente filme nacional; é um manifesto de que o terror brasileiro tem carne, sangue, ossos e alma. Revela talentos, honra nossa história, bebe de fontes literárias profundas e executa com precisão. É um sopro poderoso para o gênero no país, e muito provavelmente um marco que será lembrado no futuro. Uma obra que merece ser vista na tela grande, com o coração preparado e os ouvidos atentos.

apropriacarne4 8eac2Fonte da imagem: Divulgação/Nonsense Creation

Se o Brasil sempre teve potencial no terror, talvez este seja o momento em que a cortina se abriu de vez.

Atenda ao chamado. Há algo vivo na escuridão. E tem fome.

Crítica O Telefone Preto 2 | Atende esse treco de volta se não o bicho pega!

Há quatro anos, Finn, então com 13 anos, matou seu sequestrador e escapou, tornando-se o único sobrevivente do vilão apresentado em O Telefone Preto — história que saiu do livro homônimo de Joe Hill, que, por sinal, é filho de Stephen King. Mas o verdadeiro mal transcende a morte… e o telefone voltou a tocar.

Enquanto Finn, agora com 17 anos, tenta lidar com a vida após o cativeiro, Gwen, de 15 anos e determinada, começa a receber ligações em seus sonhos através do telefone preto — e a ter visões perturbadoras de três garotos sendo perseguidos em um acampamento de inverno chamado Alpine Lake.

Decidida a resolver o mistério e acabar com o tormento que aflige a ela e seu irmão, Gwen convence Finn a visitar o acampamento durante uma tempestade de inverno. Lá, ela descobre uma ligação devastadora entre O Sequestrador (Ethan Hawke) e a própria história de sua família. Juntos, Gwen e Finn terão que enfrentar um assassino que se tornou ainda mais poderoso após a morte — e mais ligado a eles do que jamais poderiam imaginar.

otelefonepreto21 96a5aFonte: Divulgação/Universal Pictures

A sequência começa praticamente de onde o primeiro longa terminou, mas com uma perspectiva completamente nova. Se no original o terror vinha do confinamento e da presença física do vilão, em O Telefone Preto 2 o medo se manifesta no sobrenatural, expandindo o universo para além das paredes do cativeiro. Será que O Telefone Preto 2 é um terror sobrenatural à altura do original? Vale conferir a continuação no cinema?

O Telefone Preto 2 vale a pena?

O Telefone Preto 2 surpreende ao expandir o universo do original sem repetir sua fórmula. Scott Derrickson aposta em um terror mais sobrenatural, com visuais deslumbrantes e atuações intensas, especialmente de Madeleine McGraw. Apesar de pequenas conveniências no roteiro, é uma sequência sólida, madura e visualmente impressionante.

O telefone tocou novamente... Fui atender e era O Sequestrador

É muito raro uma continuação de um filme de sucesso — ainda mais no gênero terror — se manter no mesmo nível do original. Mas O Telefone Preto 2 consegue essa façanha, e o melhor: sem repetir a fórmula. A pegada é tão diferente que parece que estamos assistindo a um novo universo, ainda que conectado ao primeiro. A trama traz muitas novidades, expande conceitos e cria pontes inteligentes com o longa anterior, sem depender dele para funcionar. E uma boa notícia: caso você não tenha visto o primeiro, dá para ver o segundo sem grandes problemas (claro, é altamente recomendado ver o anterior pelo fato de que é um ótimo filme de terror)

Enquanto o primeiro filme explorava o terror humano, centrado em um assassino real e nas cicatrizes emocionais de suas vítimas, aqui o sobrenatural assume o controle. O mundo dos mortos invade o dos vivos, criando uma sensação constante de incerteza. A atmosfera fica mais sombria, e o vilão — agora uma força espectral — se torna ainda mais ameaçador. Existem algumas conveniências no roteiro, mas nada que atrapalhe o envolvimento. Derrickson e o co-roteirista C. Robert Cargill entregam uma história consistente, com ritmo firme e boas ideias originais, extrapolando o material do conto de Joe Hill.

otelefonepreto24 3a14bFonte: Divulgação/Universal Pictures

Scott Derrickson demonstra mais uma vez sua experiência com o gênero, depois de títulos como A Entidade e Livrai-nos do Mal. Seu olhar técnico e criativo é um dos pontos altos do filme. Se o primeiro Telefone Preto era sobre o medo palpável, aqui ele traduz o pavor invisível. A intersecção entre o real e o espiritual é construída com transições brilhantes e um uso magistral de câmera, que permite ver os dois mundos coexistindo.

O visual é um espetáculo à parte. O diretor faz uso de efeitos e truques de câmera que só funcionam em um cenário gélido: janelas cobertas de gelo com expressões aterrorizantes, nevascas intensas e perseguições sobre lagos congelados criam um ambiente ao mesmo tempo belo e ameaçador. Há excelentes jump scares, sempre bem dosados, e o uso da penumbra é de altíssimo nível. A decisão de diferenciar o “mundo do além” com um aspecto de filme envelhecido e granulado é um toque de pura criatividade.

Outro acerto está no elenco. Se no primeiro longa Mason Thames carregava o protagonismo, aqui cede — e, às vezes, divide — o espaço para Madeleine McGraw, que entrega uma performance excepcional. Sua personagem Gwen é o coração emocional da trama: determinada, vulnerável e poderosa ao mesmo tempo. A jovem atriz demonstra um domínio impressionante em cenas de desespero, medo e coragem. É dela o papel mais difícil, e ela o cumpre com brilho.

otelefonepreto23 11c3eFonte: Divulgação/Universal Pictures

Completando o elenco, Miguel Mora tem boa presença, ainda que em menor escala, e Demián Bichir adiciona peso à história, com uma atuação segura e contida. Já Ethan Hawke retorna de forma mais intensa, uma vez que seu personagem tem ainda mais poderes e sua presença continua sendo o elemento mais inquietante da franquia. Mesmo sem corpo físico em boa parte da trama, o ator impõe o mesmo desconforto e ameaça com aparições cada vez mais tenebrosas.

Som, luz e pesadelos: um espetáculo técnico do medo

A fotografia de Pär M. Ekberg é deslumbrante. O diretor de fotografia entende que o horror está tanto no que se vê quanto no que se insinua. O contraste entre luz e sombra, o uso inteligente de tons azulados e brancos para as cenas na neve e o visual um pouco apagado dos flashbacks criam uma estética sofisticada e coerente. A fronteira entre o real e o imaginário é constantemente embaralhada — e é isso que torna o filme visualmente hipnótico.

A trilha sonora, composta por Atticus Derrickson (filho do diretor), também merece destaque. Em sua estreia em longas-metragens, o jovem compositor aposta em sons distorcidos, ecos metálicos e ruídos que parecem vir do além. As faixas lentas e melancólicas ajudam a prolongar a sensação de pesadelo, transformando o silêncio em mais um elemento de terror. É um trabalho inventivo, que complementa o clima frio e espiritual do filme.

 otelefonepreto22 c2701Fonte: Divulgação/Universal Pictures

No fim das contas, O Telefone Preto 2 é uma sequência surpreendentemente sólida. É mais maduro, mais ambicioso e, de certa forma, mais triste. O foco no trauma e na conexão entre os irmãos dá profundidade emocional ao terror, elevando a história além dos sustos fáceis. Derrickson entrega um filme inventivo e assustador na medida certa, que prende o espectador do início ao fim sem repetir o que já funcionou antes — prefere expandir e arriscar, e é justamente aí que acerta. Uma excelente pedida para ver no cinema, de preferência com o volume alto e o coração preparado.

Crítica do filme Tron: Ares | A história rasa do ChatGPT que ganhou novos Ares com gráficos incríveis

Em 1982, Tron apresentou ao mundo uma ousada visão do ciberespaço, quando computadores ainda eram novidade. Quase trinta anos depois, Tron: O Legado (2010) trouxe a franquia de volta com visual arrojado e trilha marcante do Daft Punk. Agora, em 2025, "Tron: Ares" surge como o elo improvável dessa trilogia esparsa — uma mistura de nostalgia, experimentação digital e um esforço visível para manter o brilho de uma ideia que sempre foi mais fascinante visualmente do que emocionalmente.

A trama apresenta Ares, um programa avançado enviado do mundo digital ao real — o primeiro contato direto entre humanos e uma inteligência artificial materializada. O conceito é promissor, especialmente em tempos de ChatGPTs e robôs humanoides, mas o roteiro transforma essa premissa potente em uma narrativa rasa, repleta de momentos previsíveis e explicações que soam tão artificiais quanto o próprio protagonista.

A história, simples e diluída, dificilmente exigiria duas horas de projeção. Há uma sensação constante de que muitos diálogos ou cenas servem apenas para costurar o próximo espetáculo visual. O resultado é um filme que deslumbra os olhos, mas raramente mexe com o coração. Ainda assim, é impossível negar que a estética — limpa, reluzente e geométrica — continua sendo a alma da franquia.

tronares00 a819bFonte: Divulgação/Walt Disney Studios

Será que a saga Tron tem energia suficiente para conquistar uma nova geração? O fascínio atual pela inteligência artificial é capaz de reacender o interesse por uma franquia que nunca encontrou um público cativo?

Tron: Ares vale a pena?

O novo capítulo da franquia brilha pelo visual e pela imersão no mundo digital, com uma trilha sonora ousada, mas tropeça no roteiro e na emoção. É um bom espetáculo visual, mas sem o aprofundamento que um tema tão atual merecia. Se você quer um filme pipoca, vale o ingresso! Mas se busca mais conteúdo, talvez seja melhor aguardar outros lançamentos de ficção científica.

Só nos Computer como nunca antes

Do ponto de vista técnico, "Tron: Ares" é impecável. A produção é um verdadeiro upgrade de firmware cinematográfico: luzes, texturas e movimentos em CGI atingem um nível de refinamento impressionante. Cada cena parece uma pintura digital em movimento, com design sonoro que mergulha o espectador em um mundo pulsante, metálico e imersivo.

A trilha sonora do Nine Inch Nails é, sem exagero, um dos pontos mais altos do filme (inclusive, está abaixo, só dar o play para curtir enquanto lê o restante do texto). Trent Reznor e Atticus Ross abandonam o estilo eletrônico dançante do Daft Punk e criam algo mais sombrio e experimental. São faixas que misturam distorções metálicas, pulsos industriais e atmosferas densas — sons que se encaixam com precisão cirúrgica nas imagens de circuitos, cabos e entidades digitais. O filme pode até tropeçar na história, mas acerta em cheio no som.

O problema é que, fora do espetáculo sensorial, pouco sobra. Os personagens são tão rasos quanto os diálogos que os movem. Ares e companhia transitam entre dilemas simplistas sobre “propósito” e “liberdade”, em falas que parecem saídas de um episódio de Pinky e o Cérebro. O roteiro não se arrisca em questões filosóficas nem constrói vínculos emocionais; prefere ficar na superfície luminosa de sua própria estética.

A construção de vilões caricatos, focados apenas em suas ambições de dominar o mundo a qualquer custo, torna tudo ainda mais cansativo — um tipo de antagonismo de manual que já não empolga, especialmente em um contexto de ficção científica que poderia explorar dilemas éticos e existenciais mais ricos.

tronares05 2b076Fonte: Divulgação/Walt Disney Studios

A franquia, que sempre brincou com a fronteira entre homem e máquina, agora aposta na inversão: não são mais os humanos que entram na Rede, mas os programas que ganham corpo no mundo real. É uma ideia interessante, mas que o filme nunca explica de forma convincente. E está tudo bem — nem tudo precisa de uma lógica científica exaustiva. Explicar em detalhes o processo de “materialização” digital só tornaria o filme mais arrastado, e talvez até pedante.

Ainda assim, não deixa de ser curioso pensar como algumas obras conseguem equilibrar conceitos complexos e emoção — Interestelar, por exemplo, traduziu teorias físicas engenhosas de forma acessível e envolvente, provando que é possível unir ciência e sentimento sem perder o público.

Lá vem Jared Leto no grau dando seu show!

A sequência de perseguição com as motos de luz é, sem dúvida, o ponto alto do filme. É o tipo de cena que faz valer o ingresso: rápida, vibrante e impecavelmente coreografada. Além disso, em outras cenas que mostram mais do mundo virtual e seus softwares em versões humanoides, a dualidade visual — com azuis frios e vermelhos incandescentes — reforça a eterna luta entre o bem e o mal no universo Tron. Nesse momento, Ares atinge o que sempre prometeu: uma experiência visual eletrizante.

Jared Leto, no papel do programa titular, é um caso curioso. O ator parece preso em uma maré de auto sabotagem artística: depois de um Coringa desastroso e performances erráticas, ele assume aqui um papel que exige pouca emoção e muita presença digital. Seu Ares é um amontoado de pixels carismáticos que tenta, sem sucesso, despertar empatia — um robô que, como o Homem de Lata de Oz, sonha em ter um coração.

tronares03 bc59eFonte: Divulgação/Walt Disney Studios

Greta Lee, por outro lado, oferece uma das atuações mais humanas do filme. Ela funciona como elo de ligação entre os universos, transitando com naturalidade entre o drama e a ficção científica. Sua personagem carrega o peso da única linha emocional genuína da história, equilibrando vulnerabilidade e racionalidade. Greta faz um verdadeiro malabarismo: ora perseguida, ora solucionadora dos problemas — uma figura que tenta dar coerência emocional onde o roteiro falha.

Gillian Anderson, a eterna Dana Scully, merece menção especial. Não apenas pela performance sólida, mas pela deliciosa ironia de vê-la novamente envolvida em tramas sobre mundos digitais e conspirações tecnológicas. Se existe alguém com “formação” para lidar com inteligências artificiais rebeldes, é ela, afinal, Arquivo X já explorava ameaças de servidores autoconscientes antes mesmo do termo “IA generativa” existir.

tronares02 bb6e1Fonte: Divulgação/Walt Disney Studios

Evan Peters, por sua vez, tem o azar de interpretar o vilão mais genérico do pacote: o jovem gênio da tecnologia, claramente inspirado em figuras como Mark Zuckerberg, cuja ambição o torna quase uma caricatura. O problema não é o ator — que faz o possível —, mas o personagem, que soa mais como um arquétipo de vilão do Vale do Silício do que alguém com camadas ou motivações reais.

Jeff Bridges surge como uma aparição simbólica, quase divina, para conectar Ares às origens da franquia. Seu Kevin Flynn é a ponte entre o clássico e o moderno — uma homenagem elegante que não precisava acontecer, mas que funciona como uma saudosa piscadela aos fãs. Ver Leto e Bridges lado a lado é testemunhar, em um só quadro, o contraste entre duas gerações de Tron: o criador e a criação, o humano e o código, o passado analógico e o futuro renderizado em 8K.

Apesar de tudo, há algo cativante no contexto em que "Tron: Ares" chega. Em plena era da inteligência artificial, o filme desperta reflexões involuntárias sobre o poder e os limites da tecnologia. Mesmo sem aprofundar o tema, é curioso como a ficção continua insistindo na ideia de que a IA um dia se voltará contra seus criadores — talvez mais um espelho das nossas próprias inseguranças do que uma previsão realista.

tronares04 713efFonte: Divulgação/Walt Disney Studios

Infelizmente, a ambição filosófica não se sustenta. Tron: Ares encerra tentando abrir espaço para uma continuação, mas o descompasso entre visual e narrativa sugere que dificilmente veremos outro capítulo tão cedo. A bilheteria não está das melhores e o histórico da franquia indica que o próximo reboot, se vier, pode demorar mais vinte anos.

No fim, "Tron: Ares" é um espetáculo sensorial irresistível: um delírio digital que impressiona pelos efeitos, encanta pelos sons, mas não resiste quando se tenta buscar substância. É o típico caso em que o hardware é de última geração, mas o software ainda precisa de uma boa atualização.

Crítica do filme O Último Rodeio | Quando o tédio monta no drama

Há produções que dialogam com públicos muito específicos e, claro, quando falamos de filmes norte-americanos, muitos têm como foco o público dos próprios Estados Unidos. Este é justamente o caso de "O Último Rodeio", que se ancora em valores, símbolos e tradições que fazem sentido dentro da cultura em que foi produzido, mas que dificilmente encontram o mesmo eco fora de lá.

Rodeios, montadores lendários e dramas de fé no interior do país formam um universo bastante particular, distante da realidade da maioria do público internacional. Mesmo no Brasil, onde os rodeios ainda têm seu público, trata-se de um recorte pequeno diante de um país diverso e majoritariamente urbano, o que inevitavelmente pode tornar a história um tanto restrita.

Em "O Último Rodeio", o veterano montador Joe Wainwright (Neal McDonough), uma antiga lenda das arenas, decide arriscar tudo para salvar o neto diagnosticado com um tumor cerebral agressivo. Sem recursos e com um seguro de saúde que se recusa a cobrir a cirurgia, ele vê no rodeio — o mesmo que quase o matou anos atrás — sua única chance de levantar o dinheiro necessário. De volta aos treinos e aos circuitos, Joe se vê obrigado a encarar não apenas os desafios físicos, mas também as feridas de um passado conturbado, incluindo a relação complexa com a filha.

oultimorodeio01 1faa2Fonte: Divulgação/Paris Filmes

Embora o ponto de partida prometa um drama emocional sobre sacrifício e redenção, "O Último Rodeio" rapidamente se revela um filme previsível e arrastado. A trama tenta equilibrar emoção familiar e espiritualidade, mas escorrega em clichês e sentimentalismo fácil. Não é um faroeste nem um épico sobre cowboys. É, antes, um melodrama ambientado em arenas e fazendas, que finge ser sobre coragem quando, na verdade, fala mais sobre teimosia.

O Último Rodeio vale a pena?

“O Último Rodeio” tenta emocionar ao retratar o sacrifício de um avô que volta às arenas para salvar o neto enfermo, mas o drama se perde em clichês e sentimentalismo fácil. Apesar da bela fotografia e de uma premissa com potencial, falta ritmo, profundidade e autenticidade para envolver o espectador de verdade.

Muitos tropeços e pouca estabilidade

Mesmo quem gosta de filmes inspiradores vai sentir que O Último Rodeio não tem muito a oferecer além de boas intenções. É o típico filme que caberia perfeitamente na grade da Hallmark: previsível, açucarado e sem grandes riscos. A história do avô que tenta salvar o neto doente ao entrar novamente em uma competição perigosa até poderia emocionar, mas o roteiro parece não confiar no público e insiste em explicar demais, repetindo emoções que nunca chegam a se concretizar.

O filme também sofre com um desequilíbrio entre fé e drama familiar. Há inclusive momentos em que a espiritualidade é empurrada goela abaixo — um personagem chega a recitar versículos bíblicos em situações aleatórias, deixando a narrativa forçada e artificial, como se a mensagem tivesse sido colocada à força apenas para agradar um público específico. Essa indecisão entre ser um drama humano ou uma mini pregação travestida de roteiro faz com que a história perca foco e autenticidade.

oultimorodeio02 1d2b8Fonte: Divulgação/Paris Filmes

Além disso, há o incômodo pano de fundo do próprio esporte retratado. As competições de montaria em touros são mostradas com glamour e heroísmo, mas o filme ignora completamente o debate sobre a crueldade animal. Talvez funcione para quem gosta de rodeios, mas é difícil não sentir um certo desconforto.

Por outro lado, "O Último Rodeio" acerta, ainda que involuntariamente, ao escancarar o problema da ganância do sistema de saúde americano. Eis aqui o verdadeiro vilão da trama! Essa questão não é tratada com a indignação que deveria, não há qualquer combate aos excessos dos convênios de saúde ou à falta de assistência por parte do governo. No entanto, é inevitável que, para determinados públicos, como o brasileiro, a gente acabe percebendo que a trama não teria muito sentido por aqui: o menino teria acesso gratuito ao tratamento pelo SUS e o avô não precisaria se arriscar até quase morrer.

Um drama que nunca sai do lugar

A direção de Jon Avnet é morna e incapaz de dar ritmo ou intensidade às cenas mais dramáticas. Mesmo nas sequências de rodeio, a câmera lenta e os closes excessivos parecem um esforço desesperado para criar emoção onde ela simplesmente não existe. Apesar da fotografia bem elaborada, com cenários bonitos e uma luz ensolarada que empolga nos primeiros minutos, rapidamente percebemos que o brilho termina por aí. A trilha sonora, que poderia amarrar os sentimentos, também passa despercebida e raramente reforça o que está em tela.

Os atores são competentes, mas estão presos a personagens sem profundidade. As emoções são contidas demais — falta desespero, vulnerabilidade e verdade. É como se o elenco inteiro tivesse sido instruído a “não exagerar”, e o resultado é uma sucessão de cenas mornas, que nunca chegam a tocar o espectador. Há talento ali, mas nada que consiga se sobressair diante de um roteiro que não oferece espaço para nuances ou crescimento emocional.

oultimorodeio03 ae75fFonte: Divulgação/Paris Filmes

No final, o filme até tenta entregar uma conclusão emocionalmente satisfatória — e, de fato, o desfecho é melhor que o restante da trama —, mas o caminho até lá é cansativo. Duas horas para contar uma história tão simples é pedir demais da paciência de qualquer espectador.

Mesmo com seus belos cenários e uma fotografia cuidada, "O Último Rodeio" não consegue se sustentar. É uma obra que parece feita para preencher horário de TV, não para ocupar uma sala de cinema. Um drama vazio, previsível e emocionalmente raso, que tenta ser inspirador, mas termina sendo apenas esquecível.

Crítica Conselhos de um Serial Killer Aposentado | A terapia mais perigosa de Nova York

Um escritor em crise criativa faz amizade com um serial killer aposentado, que vira terapeuta conjugal e consultor para um novo livro. Mas a esposa começa a desconfiar que pode ser um alvo. Essa pequena descrição é a sinopse oficial de Conselhos de um Serial Killer Aposentado, longa-metragem que promete ser “uma comédia ácida e irreverente”. Ao menos, é assim que o filme se vende.

Encabeçando o projeto está Tolga Karaçelik, diretor turco que provavelmente você nunca ouviu falar, mas que vem se destacando — tanto que agora realiza um projeto com atores americanos ambientado em Nova York. Aqui, ele propõe uma comédia sombria que brinca com temas como casamento, bloqueio criativo e homicídio — não necessariamente nessa ordem — embalada por uma energia caoticamente nova-iorquina que parece saída de um pesadelo de Woody Allen com tarja preta.

Parece uma grande doideira? Pois é mesmo! Logo de cara, fica o aviso: este não é um filme para todos. É uma comédia tão fora do eixo que às vezes parece sabotar a própria estrutura. Karaçelik mistura sátira conjugal, humor ácido, crise existencial e até meditação sobre o ato de escrever — tudo de uma vez. O resultado é tão curioso quanto desigual. Alguns temas ficam pendurados no ar, mas talvez essa indecisão seja justamente o ponto: a bagunça faz parte da graça.

Conselhos de um Serial Killer Aposentado vale a pena?

Uma comédia sombria, caótica e talvez um tanto absurda, Conselhos de um Serial Killer Aposentado transforma crise criativa e colapso conjugal em sátira ácida sobre amor, ego e insanidade — um filme estranho e imperfeito, mas, de certa forma, um pouco divertido.

Entre o caos e a catarse

O humor aqui nasce do desconforto. Karaçelik não quer que ríamos com os personagens, mas deles. E, em muitos momentos, é impossível não reconhecer um pedaço de humanidade nesse trio disfuncional — especialmente quando o amor e o homicídio parecem parte da mesma rotina doméstica. A graça está justamente em sua total falta de noção situacional. É um filme que parece sempre à beira do colapso narrativo e, por algum milagre cômico, nunca desaba. Karaçelik faz da confusão uma ferramenta estética: tudo é exagerado, fora de lugar e deliciosamente absurdo.

Há um prazer quase sádico em ver o roteirista brincar com a metáfora central — casamento e assassinato como experiências igualmente intensas e potencialmente letais. O filme entende que a convivência é um jogo de poder e manipulação, e o faz com o mesmo brilho de uma faca recém-afiada. A cada cena, a linha entre “amar” e “eliminar” fica mais tênue, e o espectador é convidado a rir disso com uma certa culpa.

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Há momentos em que o roteiro se perde em devaneios ou piadas que se estendem além do ponto ideal, mas ainda há uma coerência emocional que sustenta o caos. Os personagens, apesar da caricatura, funcionam como espelhos de uma sociedade que trata a terapia como espetáculo e o fracasso como combustível para autopiedade. É, de certa forma, uma crítica disfarçada de piada — e uma piada que às vezes acerta dolorosamente.

O ritmo, por outro lado, nem sempre colabora. Em alguns trechos, o filme se arrasta como uma sessão de casal que já perdeu o propósito, apenas para explodir de repente em situações ridículas. Essa alternância entre o cômico e o patético talvez explique por que o filme conquista apenas parte do público. Karaçelik parece se divertir em desmontar as expectativas do espectador — uma escolha que pode ser uma faca de dois gumes.

Casamento, crime e outras formas de convivência

O que mantém o filme de pé é o elenco, especialmente Buscemi, que transforma cada pausa em potencial piada ou ameaça. Seu personagem flutua entre mentor e maníaco, e o faz com um equilíbrio digno de um equilibrista bêbado. Já John Magaro interpreta Keane, o escritor em crise que, em teoria, deveria ser o protagonista. Mas sua passividade é tão crônica que ele acaba relegado ao papel de coadjuvante — tanto no casamento quanto no próprio filme. É difícil não sentir uma pontada de irritação diante de alguém tão incapaz de reagir à própria vida.

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E é justamente por conta desse marido mais sonso que água de salsicha deixada na panela que temos as reações explosivas de Suzie, interpretada por Britt Lower. Há nela um prazer anárquico que faz o filme girar quando o roteiro ameaça desandar. No caso da personagem de Lower, as reações parecem frutos de uma frustração de quem já se divorciou mentalmente há anos, mas ainda não teve tempo de avisar o marido.

Conselhos de um Serial Killer Aposentado é, no fundo, uma comédia (bem fora da curva) sobre pessoas que perderam completamente a noção de seus papéis — como escritores, parceiros ou seres humanos civilizados. Todos estão tentando “entender” a si mesmos, mas o filme parece sugerir que a sanidade talvez seja apenas uma questão de edição: corte o suficiente e qualquer um pode parecer normal.

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A direção de Karaçelik é ousada, ainda que não refinada. Ele prefere o improviso à simetria, e isso dá ao filme um ar espontâneo, quase acidental. No fim das contas, Conselhos de um Serial Killer Aposentado não é um filme sobre assassinatos, mas sobre sobrevivência — a dois, consigo mesmo ou com o próprio ego. É sobre a fina linha entre amor e loucura, sobre o prazer do erro e o alívio de saber que, às vezes, rir é a única forma de não gritar.

Não é perfeito, nem quer ser. É um filme que se contorce, tropeça, se contradiz — mas nunca perde o charme. E, convenhamos, não é tão comum ver uma comédia transformar um colapso conjugal em uma aula prática de psicopatia aplicada. Se o humor ácido tem um novo endereço, ele fica em Nova York — e tem um consultório improvisado, onde as sessões terminam em gargalhadas e, ocasionalmente, em cadáveres metafóricos.