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Crítica do filme Bohemian Rhapsody | Uma celebração ao Queen

Contar a cinebiografia de uma das bandas mais marcantes da história do rock não é uma tarefa simples, e por isso mesmo diversos contratempos em uma produção dessas já eram de se esperar. “Bohemian Rhapsody” conta a trajetória de Queen, e inevitavelmente uma figura tão carismática e espirituosa quanto o vocalista Freddie Mercury se sobressai, o que torna ainda mais difícil representar uma personalidade tão complexa sem ofender os fãs.

Para tal feito, o diretor Bryan Singer foi escalado, mas acabou sendo substituído por Dexter Fletcher  após simplesmente deixar de comparecer aos sets de gravação, ainda que Singer tenha seu nome mantido como diretor e Fletcher como produtor executivo. Já o roteiro é assinado por Anthony McCarten, com os devidos aconselhamentos dos produtores e mebros da banda Brian May e Roger Taylor.

O filme narra a rápida ascensão de Freddie Mercury (Rami Malek) e da banda Queen ao sucesso. Nascido Farrokh Bulsara, o jovem descendente de persas de aparência distinta, com mullets e dentes proeminentes vai de carregador de bagagens no aeroporto Heathrow a vocalista e co-fundador da banda após um show da Smile, onde conhece o estudante de astrofísica e guitarrista Brian May (Gwilym Lee) e o estudante de odontologia e baterista Roger Taylor (Ben Hardy). Freddie demonstra que apesar da aparência peculiar, ele possui uma voz poderosa ao cantar para os músicos em um estacionamento. Rapidamente a banda já está formada e se apresentando, com a adição de John Deacon (Joseph Mazzello) no baixo, a voz e carisma de Mercury como vocalista principal, Smile se tornaria Queen.

Quem quer viver para sempre?

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É importante ressaltar que o longa se sustenta mais como homenagem aos fãs do que propriamente uma história biográfica. Todos os grandes momentos da banda são pontuados, mas nunca aprofundados e com uma certa liberdade poética quanto aos fatos, apenas para a história se desenrolar de uma forma mais atrativa. Quem já conhece a trajetória da banda vai sentir em “Bohemian Rhapsody” exatamente o que esperava, entendendo o motivo, ainda que por vezes oculto, de cada uma das cenas escolhidas. Infelizmente isso pode ser confuso para quem não faz ideia de quem seja essa gente, e nesse sentido dificilmente o filme vai agradar quem esteja assistindo por qualquer motivo além da homenagem a banda em si.

Os detalhes da vida pessoal de Mercury são apenas superficiais e muitas vezes buscando um moralismo desnecessário e reforçando estereótipos. Inicialmente, seria Sacha Baron Cohen o escolhido para encarnar Freddie Mercury, sobretudo pela semelhança física. O papel acabou ficando com Rami Malek após Cohen ter discordado das ideias que a banda tinha para o roteiro. Ele gostaria que a história contasse mais sobre a vida pessoal de Mercury, o que envolveria cenas recomendadas para maiores de 18 anos, enquanto o roteiro final foca na trajetória profissional do cantor. Além disso, o guitarrista Brian May, que juntamente com o baterista Roger Taylor produziram o longa, gostaria que o filme mostrasse a trajetória do Queen após a morte de Freddie Mercury, algo que desagradou muito Cohen e que felizmente foi revisto no roteiro final.

Apesar de toda a desinibição e energia nos palcos, Mercury se mostra bastante contido e meio tímido quando não está cantando. Ele conhece, se apaixona e tem um relacionamento com Mary Austin (Lucy Boynton), ao mesmo tempo em que luta com sua crescente atração por homens. Ao compor e cantar “Love of My Life” para demonstrar seu amor, o sentimento parece genuíno tanto para Malek quanto para Boynton, devido a carga emocional que ambos colocaram em seus respectivos papéis, algo que transparece tanto na história real quanto na cinebiografia.

Porém, não há a mesma sensação durante as cenas onde Mercury passa a viver abertamente sua homosexualidade ao lado de Paul (Allen Leech) de forma hedonista, vivendo em festas e orgias. Falta autenticidade, em parte pela restrição etária do filme mas principalmente por medo de ser desrespeitoso com os fãs. Ambos, porém, são eficientes para expor o que há de melhor e pior em Mercury, já que, enquanto Mary sempre põe o protagonista em situações que o desafiam a amadurecer e evoluir como ser humano, Paul sempre infla seu ego e o coloca contra todos que ama, principalmente a banda.

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As músicas estão aqui para preencher os vazios no roteiro, impossível não se emocionar cada vez que uma canção começa. Nada disso seria possível sem a dedicação dos atores em dar vida aos integrantes da banda, e Malek se destaca ao entrar de cabeça em cada situação da vida de Mercury, não apenas imitando seus gestos, mas entendendo as razões que o levaram a ser essa figura tão singular.

Talvez Malek não seja exatamente igual ao cantor, mas toda a dedicação convence bastante. As músicas são cantadas por Malek e mixadas posteriormente com a voz de Mercury, assim como todos os instrumentos para os demais integrantes. Em nenhum momento soa como playback ou karaoke, mesmo prestando muita atenção e procurando erros na sincronia. Malek utiliza uma prótese para simular os quatro incisivos extras que concediam a Mercury um alcance vocal maior, detalhe indispensável para representar a figura do vocalista.

Durante os shows, Malek concede perfeição ao papel, tanto na irreverência quanto na aparência. “We Are the Champions”, “We Will Rock You”, “Radio Ga Ga”, cada composição marcando um momento distinto tanto da vida pessoal do vocalista quanto o progresso de Queen como banda. A criação de “Bohemian Rhapsody”. canção de “longos” seis minutos que mistura gêneros como rock e opera é um dos pontos mais divertidos do filme, contando com a participação de Mike Myers como executivo da EMI Ray Foster, possivelmente baseado em Roy Featherstone. Ray afirma que ninguém nunca tocaria Queen enquanto dirige, e ele não poderia estar mais errado.

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O clímax fica por conta da recriação do famoso show de 20 minutos durante o Live Aid de 1985 no London’s Wembley Stadium, considerado por muitos uma das melhores performances da história do rock. É preciso aplaudir os efeitos especiais necessários para criar um mar de gente cantando em coro com a banda. Durante a produção do longa, foi solicitado para que os fãs mandassem versões das músicas do Queen para serem mixadas e utilizadas na platéia, e o resultado não poderia ser mais perfeito.

Apesar de ser meio óbvio, se você tem algum interesse em assistir “Bohemian Rhapsody” no cinema, vale a pena investir em um cinema que tenha uma qualidade de som excelente, e para esse propósito o formato IMAX é uma ótima pedida. As cenas durante os shows capturam toda a famosa interação do público com a banda, cada grito, aplauso e sentimento podem ser sentidos ali.

Exatamente por essa razão todos os possíveis defeitos que essa cinebiografia possam apresentar são totalmente irrelevantes durante as performances musicais. Se for para botar defeito mesmo, eu acredito que deveriam focar ainda mais nas músicas, não apenas utilizá-las para demonstrar determinada situação temporal da vida dos integrantes. A história de Freddie Mercury continuou até 1991, onde ele infelizmente veio a falecer por conta da AIDS, porém “Bohemian Rhapsody” se limita em encerrar no estrondoso show de 1985, contando apenas com fotos e texto antes dos créditos rolarem. De qualquer forma, é uma ótima pedida para os fãs da banda e uma forma de entretenimento extremamente satisfatória.

Crítica do filme Nasce uma Estrela | Talentos revelados

Uma jovem talentosa, porém escondida atrás do anonimato. Um veterano do rock que se tornou uma verdadeira celebridade, afundado no álcool e com nenhuma perspectiva para sua própria vida. Quando essas duas personalidades se encontram, ganha corpo a história de "Nasce uma Estrela".

No novo filme, estrelado por Bradley Cooper e Lady Gaga, conhecemos a história de Jackson Maine e Ally, duas pessoas em fases completamente diferentes da vida, mas que aparentemente sofrem do mesmo vazio.

Se o argumento do filme é clichê, o roteiro também não é novo. A primeira vez que "Nasce Uma Estrela" ganhou os cinemas foi em 1937, mas a protagonista queria ser atriz, não cantora. Depois disso, a história original de William A. Wellman e Robert Carson já ganhou outras duas adaptações. Esta recente, no entanto, teve o roteiro adaptado por Will Fetters, Eric Roth e o próprio Bradley Cooper, que também dirigiu a película.

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Nele, Jackson encontra Ally sem querer em um bar de drag queens, onde ela se apresenta eventualmente, e se apaixona pela voz da moça. Na mesma noite, a convida para beber e os dois compartilham uma noite bucólica e sincera, algo que é ausente na vida do cantor.

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Bradley Cooper está irreconhecível por trás daquela barba e cabeleira, mas seu talento de interpretação conhecemos muito bem! Onde o moço parecia estar escondendo o jogo, isso sim, era na cadeira de diretor, que ele ocupou pela primeira vez em sua carreira para "Nasce uma Estrela".

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Além de fazer um belo trabalho de direção em um longa metragem que, embora deveras cansativo depois de quase duas horas e meia de filme, consegue ser bem montado e agradável aos olhos e e aos ouvidos, ele também surpreende muito o espectador com seus dons de cantor. Dá até pra se questionar se aquela seria de fato a voz do ator ou se ele estaria dublando, mas a verdade é que todas as canções foram gravadas - algumas delas ao vivaço! - por Cooper e Gaga.

Lady Gaga que inclusive não economizou no vozeirão durante o longa-metragem. Você pode conferir a trilha sonora inteirinha aqui no Spotify

Gaga é outra que impressiona na tela. A cantora mostra os talentos de atuação agora nas telonas, já que sua mais relevante incursão como atriz havia sido como a Condessa em American Horror Story, além de algumas pequenas participações em outras produções e em seus próprios curtas e clipes. Ela prova também que vai bem em outros gêneros, além do pop que a consagrou.

Fama e anonimato

Embora desde o começo se mostre desagradada pelos efeitos que a fama geram na vida de Jackson, Ally - talvez mais seu pai do que ela mesma - sonha em cantar em um palco para um grande público. Mas, que tipo de transformações isso causaria em sua vida? Jackson está ali justamente para mostrar que a perspectiva do lado de lá, por trás de todo o glamour, não é nada boa.

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Além de cantar, a protagonista também compõe e, mesmo que tenha muito a dizer, até agora sua voz não foi ouvida por quem ela gostaria. Neste sentido, "Nasce uma Estrela" toca em vários tabus da indústria musical - os efeitos da fama, as imposições das gravadoras, o roubo da originalidade, a ditatura da beleza, a não aceitação de determinados tipos de rostos e de pessoas.

No fim, mais do que um clipe musical de longa-metragem, "Nasce uma Estrela" tem muito a dizer ao público, com uma bem ensaiada dose de drama. Vale o ingresso, mesmo se você não for um fã inveterado da diva pop.

Critica do filme Halloween (2018) | Chegou a hora de encarar o destino

Todos receberam a notícia de que a Blumhouse estava trabalhando em uma nova edição da franquia Halloween com muita alegria. A produtora que criou um “império do terror" prova constantemente que realmente entede do assunto e a ideia de trazer um clássico como Halloween, A Noite do Terror poderia ser uma ótima oportunidade para uma nova geração de fãs entenderem o apelo da obra de John Carpenter.

Conforme detalhes da produção foram emergindo a expectativa foi aumentando. Primeiro a confirmação de que John Carpenter estaria diretamente envolvido — como compositor, produtor-executivo e consultor criativo. Depois veio a revelação de que Jamie Lee Curtis e Nick Castle voltariam para seus papéis como Laurie Strode e Michael Myers. Por fim a informação de que não se trataria de outra refilmagem, mas de uma sequência direta do filme original, desconsiderando totalmente a dezena de títulos subsequentes que o seguiram ao longo dos últimos 40 anos.

A produção certamente chamou a atenção dos fãs, mas será que o produto final realmente alcançou toda a expectativa? A resposta é não, o que não significa dizer que o novo Halloween é um filme ruim, mas o prisma nostálgico e a falta de inovação não atingem os anseios da maioria dos fãs (ou, pelo menos, os meus) que esperavam um retorno triunfal de uma das maiores Scream Queens do cinema e seu perseguidor implacável.

Enterrando o passado

Halloween (2018) e uma continuação direta do filme original, lá de 1978,  e comeca depois dos eventos da fatídica noite de terror em que Michael Myers saiu em um rompante homicida. Dezesseis anos se passaram e com o maníaco preso em uma instituição mental, uma equipe britânica de documentaristas vem aos Estados Unidos para gravar seu podcast em uma série de reportagens sobre Michael Myers e suas vítimas.

Depois de um encontro pouco produtivo com Myers e seu novo psiquiatra, Dr. Sartain (Haluk Bilginer) — que assumiu os cuidados de Michael depois da morte do Dr. Loomis — a dupla resolve entrevistar o outro lado dessa psicose, Laurie Strode (Jamie Lee Curtis). Depois de sobreviver ao ataque, a garota desenvolveu uma paranoia que obviamente afetou, e ainda afeta, toda e qualquer forma de relacionamento, especialmente com sua filha Karen (Judy Greer) e neta Allyson (Andi Matichak). Reclusa, Laurie treina e prepara a sua casamata na qual espera sempre alerta por um eventual retorno de seu atormentador.

Como era de se esperar, bem a tempo da noite do Dia das Bruxas, Michael Myers escapa da prisão e retoma seu caminho de sangue até Laurie, deixando uma boa quantidade de corpos pelo caminho. Agora, Laurie e sua família tem que encarar o seu maior medo, o retorno do bicho-papão em pessoa, Michael Myers, o monolítico psicopata silencioso com a sua máscara inexpressiva de William Shatner.

Você já tem nosso cartão C&A?

Enterrados no passado

O roteiro de Jeff Fradley, Danny McBride e David Gordon Green (que também assina a direção) não é nenhuma pérola do cinema de terror, mas passa longe de ser um fracasso total. Na verdade, ao longo da primeira meia hora, o filme entrega vários conceitos interessantes que por si só já renderiam histórias inteligentes.

Um bom exemplo é a forma como a violência da noite de terror afetou os envolvidos, notadamente vítima e agressor. As feridas de Laurie são muito mais profundas do que cortes e hematomas e a própria ideia de que, para os padrões atuais, Michael Myers não parece tão chocante — como um dos personagens filme propõem.

Afinal, cinco mortes não soam tão horripilantes para jovens millenials que convivem com notícias de seus próprios colegas armados invadindo salas de aula e fuzilando dezenas de crianças de uma só vez. Os tempos mudaram, a violência mudou. Como a “maldade” inerente de Myers é discutida nesse cenário? Qual é a verdadeira motivação de Myers?

Não tem ninguém aqui...

O grande problema do roteiro escrito pelo trio é que todas essas ideias, e outras, não são nem um pouco exploradas. O filme não define qual é o seu verdadeiro foco, trocando entre Laurie e Myers e não se aprofundando em nenhum. Qualquer discussão sobre o próprio gênero slasher é evadida com algumas mortes gráficas ou um momento de drama familiar mal encaixado. O relacionamento de Laurie com sua filha, neta e o próprio Michael Myers é uma discussão realmente interessante que é sumariamente jogada de lado.

De positivo, o momento de empoderamento intergeracional feminino, colocando mãe, filha e neta juntas para superar um terror do passado. No fim, não há nada de novo no fronte, Halloween (2018) tem algumas boas ideias, mas se quer se dá ao trabalho de explorar elas. Uma pena haja vista que tecnicamente, a direção de David Gordon Green traz alguns elementos muito interessantes na fotografia, no ritmo (obviamente inspirado no estilo de Carpenter) e especialmente no plano sequência que acompanha um dos ataques de Michael.

Outro ponto excepcional do filme é a trilha sonora. Como dito anteriormente, o próprio John Carpenter, ao lado de seu filho, Cody Carpenter e de Daniel Davies, trazem todos os sons que marcaram a franquia. Combinando novos arranjos, amplificando velhas partituras e criando algo singular. Os sintetizadores literalmente ditam o tom do filme.

Nossa miga errei toda a base, tá  branca e craquelada

Desenterrando

Longe de ser a prior iteração da franquia, Halloween (2018) é um filme mediano que não alcança todo seu potencial. Dentro dos slasher é uma adição interessante, mas que não é suficientemente assustador, enérgico ou, até mesmo, engraçado.

Fica evidente a necessidade de se reinventar essas franquias, simplesmente mostrar psicopatas esquartejando vítimas não é suficiente para prender a atenção do espectador. Alguns sustos são sempre bem vindos, mas mesmo em um gênero tão visceral quanto o slasher é preciso explorar novas ideais. Todas as histórias já foram contadas, basta encontrarmos novas maneiras de contá-las.

Halloween (2018) enterra o passado sem causar traumas ou lamúrias

Se você é um fã ardoroso e espera algo tão impactante quanto o original certamente sairá do cinema decepcionado. Todavia, o que é apresentado uma espécie de enterro honroso para uma das maiores franquias de terror do cinema. Obviamente ainda vamos ver alguma outra forma de iteração da série Halloween, mas esse filme consegue deixar o passado para trás sem causar indignação nos fãs da velha-guarda, ao mesmo tempo em que abre caminho para reinvenções. 

Crítica do filme A Casa do Medo – Incidente em Ghostland | Medo de voltar

O subgênero de terror conhecido como “torture porn” — uma releitura do Grand Guignol francês devidamente pasteurizado por meio de slasher e splatters — parecia ter alcançado eu ápice e consequente declínio lá na primeira década dos anos 2000. Com diretores arrojados e que não pediam desculpas a ninguém com suas longas e angustiantes cenas de violência, filmes como O Albergue, Jogos Mortais e A Casa dos 1000 Corpos enaltecem entranhas, nudez, mutilação e sadismo.

Na trilha desses realizadores estadunidenses, surge na França um movimento que enxerga nessa visceralidade uma forma especial de transgressão cinematográfica. Batizado de New French Extremity (novo extremismo francês), o movimento estrelado por diretores como Xavier Gens, Gaspar Noé, Catherine Breillat, Claire Denis e Alexandre Aja — entre outros — passa a forçar os “horizontes” do cinema, exigindo uma blindagem psicológica cada vez mais intensa do espectador, que é exposto a temas e imagens cruas, extremas. 

Dentre os vários títulos e diretores que se destacaram no New French Extremity, os nomes de Pascal Laugier e sua obra Mártires (2008), são sem sombra de dúvida um dos mais relevantes. O diálogo sociofilosófico proposto por Laugier brinca com o niilismo, ao mesmo tempo em que propõem uma boa discussão metafísica sobre o próprio gênero “torture porn”, com seus símbolos e significados. Mesmo que envolto em controvérsia é impossível não ter uma reação emocional intensa ao assistir Mártires.

O tempo passou o New French Extremity seguiu se desenvolvendo e parecia que Pascal Laugier seria um “diretor de um filme só”. O Homem das Sombras (2012), primeira empreitada estadunidense do diretor francês, apostou em uma história ambiciosa e intrigante, mas que em nenhum momento mostrou o verdadeiro talento de Laugier, ficando aquém até mesmo de A Profecia dos Anjos (2004), seu primeiro filme.

Agora, visivelmente mais maduro, o diretor retorna com A Casa do Medo – Incidente em Ghostland e entrega um filme que volta a questionar o “torture porn”, aproveitando elementos de “home invasion” (invasores de lares como Os Estranhos e Violência Gratuita) e recheando tudo com muito terror psicológico. O filme acerta o alvo e deve agradar aos espectadores de estômagos mais resiliente.

O medo não é efêmero

Pauline (Mylène Farmer), mãe das adolescentes Beth (Emilia Jones) e Vera (Taylor Hickson), acaba de herdar a casa de sua falecida tia. A casa, digna de um episódio de “Acumuladores Compulsivos”, fica no meio do nada e está abarrotada de antiguidades, quinquilharias e, como não poderia ser diferente, bonecas sinistras.

Como era de se esperar, a mudança de um centro urbano para uma fazenda isolada parece não agradar muito a dinâmica Vera (Taylor Hickson), que vive em constante disputa com sua irmã Beth (Emilia Jones) - uma jovem que aspira ser uma escritora de terror. Na mesma noite que se mudam as três são surpreendidas por dois invasores perturbados que passam a aterrorizar as mulheres. Em tempo, a mãe, Pauline consegue se livrar e matar os dois agressores.

Dezesseis anos depois do incidente, Beth virou uma escritora de sucesso — casada e com um filho — a garota parece ter utilizado sua escrita como terapia para superar os traumas. Tudo muda quando ela precisa retornar à casa de Ghostland para ver a sua irmã que nunca se recuperou dos eventos da fatídica noite e ainda vive num pesadelo constante.

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É neste momento que a história ganha outra dimensão. O ataque no início do filme não é o fim do martírio das mulheres. Beth e sua família vivem atormentadas pelo passado, sua mãe segue presa na casa, cuidando de Vera — que por sua vez permanece sofrendo física e mentalmente os horrores da agressão.

Sem entregar muito da trama, para não estragar as reviravoltas, direi apenas que a história brinca com narrativas, clichês e o próprio gênero “torture porn”. É difícil falar mais sem estragar as surpresas do roteiro, mas a introdução de elementos sobrenaturais é muito bem amarrada a trama principal, que por sua vez faz um uso paradoxal de vários chavões para fugir do lugar-comum.

Parece estranho, mas tudo se encaixa e faz sentido sem cair na mesmice de sempre. As reviravoltas não são particularmente geniais, o espectador mais atento percebe elas vindo conforme as conexões vão emergindo, mesmo assim elas são inteligentes — muito por conta da direção de Laugier.

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Terra de fantasmas

Muito do terror extraído por Laugier deriva da ótima ambientação e do talento do elenco. A casa é o cenário perfeito para o tipo de terror proposto pelo diretor. Normalmente associado a segurança, conforto e carinho, a deturpação do conceito da casa (ou melhor, do lar) é essencial para um bom terror — especialmente para o “torture porn” e ainda mais para o “home invasion”.

Na casa de Ghostland temos essa ideia executada com muita habilidade. O diretor abusa de clichês do gênero para perverter princípios como inocência, realidade, fantasia, família… Tudo está em desordem, a decoração e a própria arquitetura criam um labirinto real e imaginário, misturando memória e percepção, passado e presente. A atmosfera é saturada, passando uma sensação de sonho (ou pesadelo) que deixam o espectador angustiado o tempo todo que está dentro da casa.

Aliada a essa ambientação temos o trabalho equilibrado dos atores. Com atuações convincentes, o elenco principal confere a dramaticidade suficiente para as cenas mais tensas sem cair na canastrice típica das produções menores do gênero.

Vale lembrar também a controvérsia envolvendo a atriz Taylor Hickson. A garota que vive uma das personagens principais, Vera, teve seu rosto desfigurado em um acidente durante as filmagens. Hickson processou os produtores quando uma porta de vidro se quebrou e os estilhaços a atingiram, mesmo tendo sido assegurada pelo próprio diretor de que não havia risco na cena. Apesar do ocorrido lamentável, fica evidente o comprometimento da atriz que entrega algumas das cenas mais impactantes da película.

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Pós-traumático

A Casa do Medo – Incidente em Ghostland não tem a mesma força que Mártires (2008), e certamente não causará o mesmo impacto. Mesmo assim, sem muito alarde, o novo projeto de Laugier cumpre seu papel entregando um bom filme de terror.

Mesmo sem apresentar o ímpeto vanguardista de trabalhos anteriores, Pascal Laugier ainda traz propostas diferentes e apresenta o verdadeiro New French Extremity, abordando temas indigestos de maneira bruta e pujante. Na realidade, Ghostland não deve se firmar como uma unanimidade mesmo entre os fãs mais ardorosos do estilo — que terão discussões ardorosas sobre sua “validade” cinematográfica —, enquanto os de estômago mais sensível sequer terão coragem de se submeter ao terror.

Depois de transformar o torture porn em arte, Pascal Lauginer apresenta o "Terror de Estresse Pós-traumático"

Todavia, A Casa do Medo – Incidente em Ghostland merece mais atenção e, guardadas indevidas comparações, figura sim entre os melhores títulos de terror do ano. Com uma abordagem pesada, Laugier propõem uma discussão interessante sobre misoginia, empoderamento feminino e perturbação de estresse pós-traumático dentro de um gênero que é erroneamente desassociado de pautas relevantes.

Crítica do filme Venom | Uma simbiose entre bom e ruim

Mais um filme baseado em quadrinhos, para a alegria dos fãs. “Venom” é uma aposta bem arriscada de pegar carona no Universo Cinematográfico Marvel, em que a Sony utiliza os direitos dos personagens (secundários e que quase ninguém se importa) para criar seu próprio mundo de “heróis”.

Venom é um dos vilões mais icônicos do Homem-Aranha, muito popular nas histórias em quadrinhos e permeando o universo Marvel de diversas formas. O principal desafio de produzir esse filme era pegar um vilão extremamente vinculado ao Aranha e desassociar os dois, contando uma origem independente, para então transformá-lo em anti-herói em apenas um longa. Essa missão quase impossível foi bem sucedida?

Nós somos Venom?

O problema não seria tão grande se toda a origem do personagem não fosse baseada nos poderes e ódio mútuo de Eddie Brock e Venom contra Peter Parker/Cabeça de Teia. Porém, para quem estava esperando uma inserção no universo Marvel, ou mesmo uma breve aparição do Homem-Aranha, pode esquecer, ele nem ao menos é mencionado.

Os arcos das histórias em quadrinhos “Protetor Letal” e “Planeta dos Simbiontes” foram inspirações declaradas, e para quem curtiu o filme (sério?) ou pelo menos se interessou pelo personagem, vale a pena buscar pela fonte original. Os roteiristas Scott Rosenberg e Jeff Pinkner fizeram todos os milagres possíveis, mas infelizmente os milagres vão até onde os direitos da Sony acabam. É visível o esforço em introduzir detalhes e personagens conhecidos dos fãs mais fervorosos para justificar essa bagunça, mas o melhor mesmo é esquecer tudo que você sabe sobre Venom e apenas assistir sem pretensão.

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O início do filme é atropelado, conhecemos Eddie Brock (Tom Hardy), um repórter investigativo relativamente competente, mas impulsivo e meio sem noção. Ele está em um noivado com Anne Weying (Michelle Williams), uma advogada que representa a Fundação Vida.

Entre tecnologia avançada, indústria farmacêutica e pesquisa e exploração espacial, a Fundação Vida é encabeçada por Carlton Drake (Riz Ahmed), um jovem gênio milionário que aparenta ser uma boa pessoa mas possui desvios éticos preocupantes. O fato é que a Fundação encontrou vida fora da Terra e conseguiu trazer para cá, mas elas precisam de um hospedeiro para sobreviver no nosso planeta, o que pode ser chamado de parasita, mas como isso é ofensivo para essas formas de vida eles preferem o termo “simbionte”, sugerindo um benefício mútuo.

O roteiro é absurdamente fraco, com diversas situações convenientes e que nem são tão relevantes para a história. Em filmes deste gênero é sensato ter um bom nível de suspensão de crença, mas “Venom” abusa. Não é nem necessário pontuar esses buracos, já que é claro o desleixo apenas para que cenas específicas aconteçam.

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A sensação é de que são dois filmes distintos. Em um deles, todos os atores tentam entregar um papel coerente e “sério”, enquanto no outro Tom Hardy parece estar possuído, atuando em um filme de paródia pastelão digno da Sessão da Tarde. E por incrível que pareça, essa é a graça do filme. Toda a relação e descobertas de Venom e Brock são bastante engraçadas, os diálogos internos e principalmente as cenas de ação são a única razão do longa ser “assistível”.

A atuação de Michelle Williams é um bom contraponto para Hardy, apesar da personagem feminina que serve de mãe e esposa. Riz Ahmed rouba a cena sempre que aparece, mas suas motivações são tão rasas quanto o roteiro do filme, assim como todos os outros personagens secundários. É melhor focar só nas cenas de ação e no humor ocasional mesmo.

Aparentemente o diretor Ruben Fleischer apenas seguiu a risca o que a Sony exigiu para o longa. Com uma fotografia sombria, talvez buscando um possível clima de terror ou algo mais “maduro”, fugindo do colorido tradicional dos super heróis. Porém, destoa totalmente do clima do filme.

Mas Fleischer acerta nos efeitos especiais e cenas de ação, com cenas claras e sem cortes desnecessários, explorando o potencial dos poderes dos simbiontes tanto na aparência quanto nas lutas, tudo bem orgânico, diferente da terrível versão de Sam Reimi em Homem Aranha 3. Apesar de que em diversos momentos Venom devora pessoas pela cabeça, consumindo totalmente o corpo em questão de segundos, porém é compreensível que isso seja mais um alívio cômico do que um erro propriamente dito.

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Esse é o possível começo de um universo da Sony com personagens secundários que ninguém liga, já que Tom Hardy tem contrato para três filmes como Venom, porém nada é certo. Há uma cena pós-crédito que serve mais como um agrado aos fãs do que uma chance real de uma sequência interessante, mas isso só o futuro (e a bilheteria) dirá.

A última cena pós-crédito não tem relação com o filme, mas mostra um trecho da animação "Homem-Aranha no Aranhaverso”  essa sim uma abordagem do aracnídeo que deve agradar todos os fãs.

Enfim, “Venom” não deve ser tomado como uma obra de arte indispensável, mas um entretenimento leve e despretensioso. Com todos os seus defeitos, ao menos não é cansativo e diverte até o final, exatamente como um filme de heróis deve ser.

Crítica do filme Um Pequeno Favor | Algo de errado não está certo

Por mais transparentes que sejamos, todos temos segredos, que, eventualmente, podem nos colocar numa sinuca de bico ou deixar outros em maus lençóis. Esta é uma máxima para o caso da amizade entre Stephanie (Anna Kendrick) e Emily (Blake Lively).

As duas se conheceram há pouco tempo, mas sem precisar de muito esforço logo se tornaram melhores amigas. Ainda que esta seja uma amizade um tanto desproporcional, Stephanie faz de tudo para agradar sua nova melhor companhia.

Elas trocam figurinhas, bebem juntas e se divertem enquanto cuidam dos filhos. Tudo vai bem até o dia em que Emily pede “Um Pequeno Favor” para Stephanie: basta ela buscar seu filho na escola e cuidar dele até que ela volte para casa.

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O problema é que há viagens que não têm volta. Depois de alguns dias, Stephanie percebe que a amiga desapareceu misteriosamente e, aparentemente, para sempre. O que teria acontecido com Emily? Esta é a jornada apresentada no novo filme de Paul Feig, que mistura suspense, humor, romance e outros tantos elementos. Um filme inusitado e surpreendente!

Influencer à la Sherlock Holmes

É muito bom ver uma história como a do filme “Um Pequeno Favor”, que consegue inovar no dinamismo do roteiro, algo possível principalmente pela inovação nas características mais básicas dos personagens. O script poderia perfeitamente se desenvolver como um “A Garota do Trem” ou outros títulos similares, mas a linha de abordagem é completamente distinta.

Com uma protagonista bastante moderna, o roteiro de Jessica Sharzer (que já trabalhou em “Nerve”) permite se desenvolver em cima de uma protagonista conectada com o mundo moderno, que consegue ser extrovertida e conectada com o público. Stephanie é uma pessoa que está inserida na web e que conquista pela linguagem característica de vlogs.

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Através dos episódios divulgados em seu canal, a personagem conta de sua relação com Emily, ao mesmo tempo em que passa receitas de bolo, faz piadas, conta seus dramas e dá pistas de como está prosseguindo na investigação para achar a amiga. É inegável que este é um recurso um tanto diferente num filme, mas que funciona bem e prende nossa atenção ao máximo.

É válido pontuar, contudo, que o filme não se apoia nas cenas de web para se desenvolver. O recurso está presente, mas diferente de títulos chatos que só ficam no mundo digital, a obra de Paul Feig consegue se desvincular do virtual para mostrar a protagonista entrando em cena para buscar mais informações do paradeiro de Emily.

Assim, parte do acerto para a comunicação está na linguagem do longa-metragem, mas é inegável que o resultado final só existe por conta de Anna Kendrick. A atriz que já fez muita graça em “A Escolha Perfeita” se encaixa perfeitamente no papel de mãe dedicada, engraçada e inteligente.

Elegantemente engraçado e misterioso

Apesar dessa pegada de investigação ser muito forte, possivelmente é a receita acertada com 200 gramas de piadas, 3 colheres de suspense e tempo adequado de preparo que deixam o resultado final muito mais apetitoso. “Um Pequeno Favor” é um filme que sofre de múltiplas personalidades, o que não é necessariamente ruim — muito pelo contrário.

Desde o começo, a trama se mostra muito misteriosa, algo que se deve em suma à persona de Blake Lively (que já havia nos conquistado em “A Incrível História de Adaline”). Sabe aquelas pessoas que fazem não-sei-o-que, não-sei-aonde e não-sei-como? Então, Emily é esse tipo de mulher, que praticamente não existe na vida real. É uma incógnita personificada!

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E como construir uma personagem tão enigmática? Diálogos são importantes, é claro, mas o sucesso aqui reside em dois alicerces: figurino e atuação. A roupagem de Lively é sensacional e faz a gente ficar boquiaberto a cada passo que ela dá, algo que se completa com seus olhares, trejeitos e dinâmicas com os demais personagens. Uma exuberância sem fim!

No fim das contas, ao juntar as duas atrizes, temos um combo perfeito. O diretor Paul Feig consegue fazer uma verdadeira roleta de gêneros e nos surpreende a cada ato. É muito difícil decifrar o que vai acontecer em “Um Pequeno Favor”, pois há reviravoltas a cada instante, algo pouco comum atualmente. Enfim, um ótimo filme para se divertir e se entreter nos cinemas!