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Crítica do filme Verão de 84 | Pode acontecer na sua vizinhança

É curioso como desde o lançamento de “Stranger Things”, todo filme ambientado na década de 1980 com personagens adolescentes faz as pessoas comentarem coisas do tipo: “Nossa, esse filme é muito Stranger Things, né?”.

É claro que já existiam muitos filmes ambientados nesta década, protagonizados por adolescentes e com músicas de suspense, mas algumas características específicas, usadas em conjunto, fizeram a série virar um referencial.

O filme “Verão de 84” é mais um filme que lembra muito a série “Stranger Things”, mas de comum ela só tem essa atmosfera dos anos 80 e a trilha sonora Synthwave que lembra bastante as composições de Jean-Michel Jarre, Vangelis e Giorgio Moroder.

Aliás, é interessante perceber a dificuldade para os cineastas inovarem ou, ao menos, para não dar a impressão de que eles copiaram outras obras, como o próprio “IT – Uma Obra do Medo”, que traz uma “turminha do barulho” de investigadores.

Mas a trama de “Verão de 1984” vai por um caminho completamente diferente, então não espere nada sobre mundo invertido, crianças com superpoderes, aliens do filme “Super 8” ou palhaços assustadores retirados da mente de Stephen King.

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Muito mais pé no chão e com questionamentos interessantes, o roteiro aborda o grupo de adolescentes que desconfia que o vizinho policial é, na verdade, um serial killer. A partir disso, eles decidem passar o verão investigando e juntando provas, mas conforme eles se aproximam de descobrir a verdade as coisas ficam perigosas.

Já adiantando que, se você veio aqui para descobrir se o filme é bom, eu posso dar a resposta rápida: sim, “Verão de 1984” é um filme que diverte na medida e entrega uma boa trama. O desenvolvimento do filme é um tanto lento e mesmo com a trama um tanto óbvia, o final consegue surpreender e vale muito a pena.

Suspense constante

Filmes que entregam o ouro já no trailer acabam não tendo muito para contar, eis talvez o fator mais limitador de “Verão de 84”. Quer dizer, mesmo que haja uma reviravolta surpreendente, você ter um norte específico, impede que o roteiro voe para ideias inusitadas.

Assim, ao dar play no filme, a gente já sabe exatamente o que esperar: uma turminha do barulho tramando planos para investigar seu alvo. Assim, toda a trama do filme é ver os garotos divagando sobre as suspeitas que têm do vizinho e como eles podem provar que ele tem culpa no cartório.

Veja que isso não é um problema, existe muitas opções de investigação e o andar da carruagem depende somente da criatividade do roteiro. Infelizmente, o script não tem uma criatividade de outro mundo, mas, por outro lado, é de se questionar se todo filme precisa ser um Stranger Things com situações de cair o queixo.

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O ponto é que a trama mais se aproxima de “Detetives do Prédio Azul” do que de “Sherlock Holmes”. Totalmente normal para uma turminha que só tem lanternas e walkie-talkies como ferramentas. Contudo, o filme não prende tanto nossa atenção pelos desenrolar dos fatos e tenta compensar de outras formas.

Um dos apoios mais evidentes para o suspense é a trilha. No entanto, a produção exagera no uso das músicas como alavanca de mistério e só parece algo deslocado. Em alguns casos, a trilha com sintetizadores de graves reforçados em loop é inserida em cenas simples, como uma espiada pela janela ou numa simples reunião do grupinho.

Assim, com quase uma hora e cinquenta minutos de duração, o filme dá muitas voltas para chegar à conclusão. Não que seja um problema, pois temos atuações excelentes, boas piadas, ótimos figurinos, excelente ambientação e a trilha sonora competente. Tudo se encaixa, só parece que poderia ser mais curto para chegar ao mesmo ponto.

Pra deixar a gente pensando

Apesar da enrolação evidente no roteiro, o filme “Verão de 84” entrega uma conclusão muito surpreendente, que não só encerra o período das investigações, como foge do clichê e deixa o público pensativo. Aliás, é interessante que eu falei em como o filme “dá voltas” e, talvez, isso seja até proposital.

Uma indagação proposta no início da trama deixa a gente com a pulga atrás da orelha: “você já pensou que até mesmo assassinos em série têm vizinhos”? Encerrar o filme com questões similares mostra que esse é o tipo de coisa que nunca é respondida, pois temos muitos vizinhos e não conhecemos as pessoas de verdade.

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Todavia, o melhor de “Verão de 84” é justamente a fuga do clichê. Mesmo o filme apostando em vários argumentos e técnicas comuns no desenrolar do script, ele faz uma reviravolta muito potente na reta final. Primeiro, com uma redenção importante, depois com um desfecho impagável.

É raro ver títulos que apostam em finais tão ousados, pois a gente realmente espera os finais clássicos: o bem vence o mal ou vice-versa. Todavia, há mais opções fora do lugar comum. Uma ótima pedida de nostalgia, com acompanhamento de boa música e piadinhas. Quem já assistiu sabe que a conclusão é impagável. Agora, se você ainda não viu, vale gastar os R$ 4,90* pra alugar na Apple TV, pois é um bom entretenimento!

*Valor pode variar conforme período promocional na loja da Apple TV. 

Crítica do filme The Old Guard | Charlize Theron sendo bad ass. Precisa de mais?

Em menos de dez dias desde sua estreia na Netflix, "The Old Guard" já se tornou um dos 10 filmes mais vistos na história da plataforma. O filme, que estreou no dia 10 de julho, é uma adaptação dos quadrinhos assinados por Greg Rucka.

Quis começar começar esse texto dizendo que o longa-metragem de ação vem dos quadrinhos porque só soube disso quando estava pesquisando informações para escrever sobre ele. Possivelmente, saber disso antes de ver teria afetado minha forma de olhar para a história, então, é importante dizer que esse amontoado de opiniões não solicitadas sobre "The Old Guard" diz respeito unicamente à história contada no filme, não à forma como foi adaptado de outra linguagem.

Faz diferença? Provavelmente só no sentido de que apertei o play no filme sem absolutamente nenhuma expectativa - exceto ter visto o nome de Charlize Theron no elenco. Eu sequer sabia que se tratava de uma narrativa sobre pessoas imortais que, na falta de nada melhor pra fazer, decidiram dar significado à sua existência se transformando em guerreiros defensores de qualquer causa de considerassem digna de atenção.

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Tiro, porrada e bomba

Para quem gamou na Furiosa, do mais recente "Mad Max: Estrada da Fúria", "The Old Guard" traz novamente Charlize Theron dando um show de articulação e domínio da arte de acabar sozinha com dezenas de oponentes, não importa o que ela tem à mão - se uma bazuca, uma pistola, uma faca ou nada além da sua própria habilidade.

Uma das mais talentosas atrizes da atualidade, ela é o grande destaque de "The Old Guard", assim como sua personagem, Andy. Sem aprofundar muito na história, para não encher o leitor de spoilers de uma história que já não tem lá grandes revelações, basta dizer que Andy é a líder de um grupo de justiceiros formado por Booker (Matthias Schoenaerts), Joe (Marwan Kenzari) e Nicky (Luca Marinelli).

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Logo de cara, eles são contatados por Copley  (Chiwetel Ejiofor) para uma missão de resgate e, claro, se trata de uma tarefa impossível para qualquer time, exceto para o melhor esquadrão informal ao qual nem a CIA tem acesso.

Os caminhos do grupo de Andy vão se cruzar com Nile (Kiki Layne), uma cabo do exército norte-americano em atuação no oriente médio. Eu sei, lendo assim, parece até uma espécie de "Mercenários", mas não tem nada a ver com isso.

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Sem grandes surpresas

"The Old Guard" é dirigido por Gina Prince-Bythewood e produzido pela própria Charlize Theron. Não há confirmação ainda de que o filme vá ter uma sequência, mas depois do estrondoso sucesso nessa primeira semana de estreia (e os caminhos que a história toma), é quase certo que a plataforma vá investir na continuação.

A própria Theron já disse que não apenas deseja ver mais sobre o esquadrão, como quer ninguém menos que a cantora Rihanna no elenco. Será que sai?

Embora a adaptação para a Netflix tenha sido criticada por alguns leitores dos quadrinhos por algumas mudanças feitas na história e na protagonista (e quando não é?), é interessante saber que o roteirista do filme é o próprio Greg Rucka, autor dos quadrinhos.

Talvez por se tratar de um roteiro bastante introdutório para quem não conhecia a trama, "The Old Guard" não reserva grandes surpresas para seus espectadores. Até as viradas que claramente são pensadas para trazerem momentos de clímax para o filme são bastante óbvias e previsíveis.

Particularmente, não acho que isso seja um grande problema. Ninguém assiste a um filme como este esperando ser surpreendido por um roteiro genial. Muito provavelmente, se está na dúvida sobre ele, você esteja mais interessado em saber se é bom ou não.

Bem, as cenas de ação são bem-feitas, não apenas pela protagonista, e a película consegue envolver bem o espectador durante as suas quase duas horas. Para quem curte ação, isso é mais do que suficiente!

Crítica do filme Meu Bebê | Uma comédia para assistir em família

Há filmes que são quase impossíveis de não se identificar com a história, Meu Bebê de Lisa Azuelos não é diferente. Já começa pelo título! Apelido afetivo que toda mãe chama o seu filho  - e não importa a idade. O longa conta a história de Heloïse (Sandrine Kiberlain), mãe de três filhos, e da sua caçula Jade (Thaïs Alessandrin), que está prestes a sair de casa. 

Em cartaz no Festival Varilux Em Casa, a comédia Meu bebê foi a minha primeira escolha de filmes franceses para assistir em período de isolamento. E não é pra menos, faz três meses que saí da casa dos meus pais para conquistar a tão esperada autonomia da vida de adulta. Diferente de Jade não mudei de país, mas assim como ela, eu sou a filha mais nova e a última que deixou o ninho (se você está prestes a viver uma situação parecida vale a pena conferir).  

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Após Heloïse ler a carta de admissão de Jade em uma universidade no Canadá, o seu instinto maternal sofre um inesperado impacto de imediato. Durante um ano, as duas vivem em clima de saudosismo e reflexão sobre o passado e futuro. Longe de ter uma visão melancólica para sustentar a sensação de solidão, a história é coberta de lembranças e momentos engraçados e constrangedores que mãe e filha já passaram juntas. 

O filme de Lisa é uma sinfonia inclinada à amizade e o amor, o seu jeito de tornar tão terno o vínculo de Heloïse com os seus filhos potencializa o elo puro e afetivo que existem na família. Claro, que nem tudo são flores. Há tristeza, conflitos, ausência paterna e ciúmes entre irmãos que fazem ser tão orgânica a comédia.

Toda mãe sofre dois partos por filho

Para entendermos a trajetória emocional da protagonista com o fechamento de um ciclo, a comédia utiliza-se de flashback em várias situações corriqueiras, o que amplia o aspecto dramático da história e de certo modo cômico também. 

Como na cena que vemos a filha adolescente retirando a casca do pão, costume que aprendeu na infância com a mãe. Em seguinda somos levado ao passado para vivenciar a mãe preparando o lanche de Jade quando ela era criança. Meu Bebê aproveita de pequenos detalhes da rotina para atribuir um novo significado cheio de saudades e complicidade entre duas parceiras.  Essas pequenas comparações acontecem o tempo inteiro no longa e nos convidam a fazer uma viagem pessoal e nostálgica por nossas próprias memórias. 

Assim como Heloïse, toda mãe enfrenta dois partos por filho: o primeiro é o nascimento e o segundo é quando eles levantam vôo. Pena que no último não há aviso prévio ou tempo pré determinado que informa quando irá acontecer, não é?! Apenas ocorre.  Nessa construção narrativa tanto Jade quanto Heloïse são tomadas pela instabilidade da mudança, uma por deixar toda a rotina, amigos e paixões para atrás e a outra por retomar o que há anos deixou de lado: cuidar de si mesma. 

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Apesar do filme privilegiar as emoções maternais, Meu Bebê também foca nos sentimentos da adolescente em deixar a família. Assim como a mãe resolveu filmar com o celular todos os momentos que passaram juntas,  a adolescente faz o mesmo com seu namorado, amigos e até mesmo o seu quarto. Afinal, para quem parte as memórias são as únicas companhia em uma nova jornada.  

Não há dúvidas que é uma comédia para você se identificar e rir com a sua mãe. Mas, não vale chorar, hein?! Brincadeira, confesso que por vários momentos me peguei em minhas próprias lembranças. Foi bom matar a saudades e relembrar da minha primeira e melhor amiga, minha mãe. 

Crítica do filme O Poço | Angustiante, visceral e incômodamente atual

O novo filme da Netflix tem dado o que falar, principalmente pela sua temática e seu final em aberto. “O Poço” é um filme de terror que assusta por ser uma fábula aplicável a vida real. O confinamento obrigatório por conta da pandemia que está nos assolando a algum tempo nos força a buscar distrações, mas quando elas falham passamos a olhar para nós mesmos e como a estrutura social vigente é falha.

“O Poço” foi pensado originalmente para o teatro, mas ao passar para a película ganhou um peso ainda mais sombrio e visceral que dificilmente seria possível em uma peça teatral.

A Netflix acertou no momento de disponibilizar esse título, já que o distanciamento social e a falha estrutura socioeconômica  pode nos mostrar o pior do ser humano, é assustador o quanto o longa é análogo a nossa realidade.

“Existem três tipos de pessoas. As de cima, as de baixo e as que caem”

O longa se passa inteiramente em um “Centro Vertical de Autogestão”, uma torre que serve de prisão, conhecida como O Poço. Somos apresentados a Goreng (Ivan Massagué) que ao contrário do que se espera decidiu por conta própria ir para lá, pois queria ler “Dom Quixote” e ainda ganharia um certificado no final de sua estadia de 6 meses.

Lá, ele conhece Trimagasi (Zorion Eguileor), um idoso que será seu companheiro de cela naquele mês. Há meses nessa prisão, ele didaticamente explica como funciona a estrutura do local. Não há luz solar e o alimento é enviado para cada andar através de uma plataforma que se move entre os andares todos os dias.

Goreng e Trimagasi estão no nível 48, então precisam esperar os 47 níveis acima se alimentarem até que os restos cheguem ao seu andar. Não demora para ficar claro que os meses ali serão como um pesadelo e que simbolizam a própria condição humana: o medo, a solidão e o desespero que mostra o pior lado de cada um.

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O luxuoso banquete é preparado no nível zero com as comidas favoritas de cada um dos prisioneiros, mas a plataforma permanece por apenas dois minutos em cada nível. Não é permitido estocar a comida, sob a pena de sofrer com calor ou frio extremos até a morte.

Mais tarde, é explicado que o banquete é pensado de forma a alimentar todos os níveis, mas fica claro que a estrutura é falha pois os níveis superiores costumam comer muito mais do que deveriam, sem se importar com quem está abaixo. A cada 30 dias, os presos são remanejados para outros andares, podendo subir ou descer de forma aleatória, o que reforça ainda mais a estrutura falha da prisão, forçando que todos passem por situações extremas até atingir os limites da fome e da sanidade humana.

Em sua estreia como diretor, o espanhol Galder Gaztelu-Urrutia acerta na narrativa com muitos elementos de gore e suspense, explicando muito alguns aspectos da trama para permitir deixar em aberto outras. Fica clara a influência de Platão e de obras neo-platônicas como Dom Quixote, que permeiam o filme para elucidar alguns pensamentos a respeito do Poço, cada detalhe é pensado para levar a uma interpretação maior da obra, principalmente a semelhança entre o protagonista e o “cavaleiro das causas perdidas”.

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“O Poço” escancara e critica a ideia de que as estruturas sociais por si só não são capazes de educar os seres humanos para a verdadeira incorporação da justiça. O modelo socialista e a luta pela justiça social é criticado constantemente ao longo do filme, que levanta um debate importante para a educação da personalidade dos indivíduos através da conquista das virtudes.

Apenas o medo pode educar, ou a própria educação?

Goreng percebe que ninguém é beneficiado na prisão, tentar fazer os níveis acima mudarem ou até mesmo serem ouvidos é uma tarefa impossível. Cada um é incentivado a comer o máximo que puder enquanto puder, sem pensar muito nas consequências.

Em certo nível o protagonista compartilha a cela com Imoguiri (Antonia San Juan), que acredita que “somente uma solidariedade espontânea pode trazer mudanças”. Ao alimentar-se apenas com o que é necessário, haveria comida para todos. Mas como fazer essa mensagem ser notada quando quem tem abundância quer mais, enquanto os níveis inferiores são obrigados a morrer de fome, enlouquecer ou tornar-se canibais?

Tanto a educação quanto o uso da violência não são suficientes para convencer todos os prisioneiros a agirem de forma justa, por isso o livro de Dom Quixote se faz tão importante para compreender o filme. Dom Quixote não simboliza apenas o conhecimento teórico, ele é o personagem literário que encarnou nos seus comportamentos os próprios valores.

Mas e o final?

“O Poço” é um filme de terror com muito mais do que alguns sustos e cenas gore. É bastante agonizante e o tempo parece parar em alguns pontos, como se você estivesse preso ali também, aguardando a narrativa chegar ao fim ou aproveitando os momentos mais tranquilos antes que tudo piore de vez. É exatamente sobre o final que eu gostaria de falar. Muitos vão assistir e se decepcionar, mas o final em aberto é o que torna o filme ainda mais relevante.

Ao tentar levar os alimentos até os andares inferiores, Goreng e Baharat (Emilio Buale) finalmente encontram a filha perdida de Miharu (Alexandra Masangkay), escondida no último andar da prisão. Ao invés de enviar a panacota intacta à Administração, como uma mensagem de solidariedade espontânea, Goreng entrega à criança faminta.

Ao compreender que a jovem poderia ser uma mensagem mais eficaz, ele se sacrifica para salvá-la. A prisão representa o que há de mais egoísta dentro do seu humano e ao salvar a filha de Miharu, ele entende que uma vida que está em risco pode ser salva se fizermos uma ação de solidariedade.

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“Nenhuma mudança é espontânea”, diz o protagonista, ou seja, é necessário passar por todos os níveis para criar compaixão para com os mais necessitados. Salvando a criança, Goreng cria uma ponta de esperança para que essa mudança ocorra. Essa é uma visão positiva e ideal, de que há recursos para todos mas os “de cima” precisam abrir mão dos excessos.

Ao chegar no fundo do Poço, ele reencontra Trimagasi, que mesmo depois de morto continua assombrando o protagonista, óbvio. Eles saem caminhando como bons amigos em direção a escuridão enquanto o velho diz que a missão foi cumprida. Diversas interpretações são possíveis.

O personagem pode ter morrido no processo e a última cena mostra o encontro com o amigo no outro mundo ou talvez mesmo salvando a menina O Poço corrompeu tanto Goreng que sair de lá já não era possível. Ou tudo não passou de um delírio após toda a fome e dificuldades enfrentadas enquanto descia, incluindo ferimentos. Talvez Goreng só precisasse esperar no último nível até o fim do mês e o confinamento finalmente acabasse. 

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Pessoalmente, não gosto dessas interpretações. Eu acredito que a chave para interpretar o final está na panacota. A menina que Goreng e Baharat encontram não passa de um delírio, já que não são admitidas crianças na prisão e ela estava saudável e limpa, mesmo estando no último nível da prisão. Ela representaria a esperança, e o fato dela comer a panacota seria a mensagem chegando ao destino. Porém, o que voltou ao nível 0 foi justamente a sobremesa.

Há uma cena anterior que mostra a indignação do chef ao notar a panacota intacta mas com um cabelo em cima. Então a mensagem que chegou foi a de que os prisioneiros não comeram a sobremesa por conta desse descuido. Todo o sacrifício foi em vão, quem está acima não vai entender seus esforços e tudo continua da mesma forma.

De qualquer forma, assim como “O Poço”, o filme possui diversas camadas de interpretação, cabe a cada um decidir até que nível é suportável chegar. É um filme recomendassímo, considerando o quanto é difícil encontrar um título interessante nas plataformas de streaming, vale a pena para quem tem estômago.

Crítica do filme Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica | Pouca magia em uma roadtrip

Difícil encontrar uma animação da Pixar que não emocione adultos e crianças, o estúdio já está tão consagrado que qualquer produção será muito bem recebida pelo público. O título da vez ganhou um título bem descritivo no Brasil, “Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica” (no original, Onward, algo como “adiante” ou “em frente”.)

Ao abordar temas complexos de uma forma simples e sincera, aliadas as animações incríveis e um estilo único, o estúdio acaba superando seus próprios limites a cada produção. Em “Dois Irmãos”, tudo isso se aplica novamente. O diretor Dan Scanlon, que já havia dirigido outro título da Pixar, “Universidade Monstro”, explora temas como luto, a ausência de uma figura paterna e as jornadas que levam as crianças a serem adultos.

Isso posto, talvez “Dois Irmãos” seja um filme simples demais para uma animação da Pixar, sem grandes surpresas na história, apesar de uma construção de mundo interessante, mas por incrível que parece o que falta é encanto e magia. 

O lúdico pelo mundano

Tudo começa com a apresentação de um mundo encantado com elfos, fadas, centauros, dragões e magos poderosos. Existem feitiços para os mais variados propósitos, muito semelhante ao universo de Harry Potter, e assim como no mundo bruxo a magia é complexa e difícil de ser dominada.

Por essa razão, com o progresso da civilização e os avanços tecnológicos sendo desenvolvidos, as criaturas deixam de lado a magia e passam a contar apenas com as comodidades da modernidade. Afinal de contas, é mais fácil apertar um botão e ter luz instantaneamente do que precisar contar com um feitiço complexo para atingir o mesmo propósito.

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É nesse contexto que vive Ian Lightfoot (Tom Holland), um jovem elfo tímido prestes a completar 16 anos, que sente a ausência do pai que nunca conheceu. Barley (Chris Pratt), seu irmão mais velho, compartilha o mesmo sentimento, mas se recusa a desanimar e deixar seu irmão sentir-se triste ou sozinho. Ele é fascinado pela magia do passado e os monumentos históricos, e é a partir de um presente deixado pelo pai que Ian e Barley embarcam numa viagem mágica.

Para complementar a jornada há ainda uma intimidante Mantícora (Octavia Spencer), que havia esquecido sua bravura para adaptar-se aos tempos modernos e a mãe dos jovens elfos  (Julia Louis-Dreyfus), que apesar de ser uma mãe solo bem comum, sabe que é muito forte, no sentido mais amplo da palavra.

Já jogou RPG?

O filme conta com um conhecimento prévio do público a cerca de criaturas místicas e fantasia medieval, sem perder tempo em apresentar as raças ou aprofundar-se em detalhes, mas nada que atrapalhe o entendimento da trama. Preocupa-se sim, e muito, em apresentar características que serão exploradas durante o desenrolar da narrativa, como por exemplo Ian com medo de dirigir em rodovias movimentadas.

As piadas são todas pautadas no conflito entre o mundano e o fantástico, como unicórnios agindo como guaxinins revirando o lixo e fadas em gangues de moto bastante agressivas. Fica claro que os roteiristas Jason Headley e Keith Bunin juntamente com Dan Scanlon se divertiram reimaginando os mitos para um mundo tecnológico.

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Houve ainda um cuidado em inserir despretensiosamente uma personagem LGBTQ+ em uma cena, tudo de forma bastante natural exatamente como deveria ser. Porém, o peso dos temas mais sérios acaba se sobressaindo ao humor, deixando a impressão que é tudo muito simples. Há um momento em que um dos personagens enfatiza que o melhor caminho nem sempre é o mais óbvio, o que é irônico considerando que o filme segue por uma linha extremamente segura, sem desvios ou surpresas. Faltou aquelas cenas que marcam a memória e encantam que os outros filmes Pixar sempre fizeram questão de carimbar.

Enfim, “Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica” promete entreter todas as idades, mas que talvez apenas confunda os mais novinhos que provavelmente vão preferir animações mais focadas na comédia. De qualquer forma, é inegável que a qualidade Pixar está registrada no longa, mas fica a esperança de que o estúdio encontre novamente o caminho da magia nas futuras produções.

Crítica do filme Bloodshot | Ação nanorobótica

Parece quase indispensável encontrar distrações nessa época tão sombria que estamos vivendo, seja por conta do distanciamento social ou seres completamente ineptos no poder. Com a impossibilidade do povo ir ao cinemas, as distribuidoras encontram estratégias alternativas para não perder totalmente o lucro das produções.

Por essa razão a Sony Pictures (entre diversas outras empresas) resolveu adiantar o lançamento digital de alguns filmes, e no caso de "Bloodshot", disponibilizou no canal oficial os 8 primeiros minutos do longa, para instigar todo mundo a assistir.

Parece quase indispensável encontrar distrações nessa época tão sombria que estamos vivendo, seja por conta do distanciamento social ou seres completamente ineptos no poder. Com a impossibilidade do povo ir ao cinemas, as distribuidoras encontram estratégias alternativas para não perder totalmente o lucro das produções.

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Para quem gosta de filmes de ação e do astro Vin Diesel, “Bloodshot” promete agradar. Porém, ninguém mais aguenta histórias de origem de super heróis, ainda mais um tão obscuro quanto esse. Por isso o diretor David S. F. Wilson teve a complicada tarefa de entregar um filme com potencial para iniciar uma franquia longe das enormes Marvel e DC Comics.

“Bloodshot” quase consegue renovar o gênero com muita ação e uma pitada de diversão, mas falha por conta do ator principal ser excelente com lutas e carros e péssimo quando a atuação exige mais do que três palavras.

Uma nova franquia de heróis?

Raymond Garrison, codinome Bloodshot, é um personagem criado em 1992 por Kevin VanHook, Bob Layton e Don Perlin. Foi publicado pelo selo Valiant Comics, que contava com diversos heróis alternativos, mas foi apenas em 2012, depois de contratar diversos membros da Marvel Comics, que a editora Valiant relançou seu universo de super heróis, dando um reboot total da história e atualizando todos os personagens. O resultado foi excelente, revitalizando os personagens para um público novo sem desagradar o público antigo e hoje em dia a Valiant possui o terceiro maior universo compartilhado dos quadrinhos.

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A adaptação para as telonas precisou “achatar” bastante a história para caber no formato proposto, mas o essencial está todo ali. Ray Garrison é um militar dedicado e excelente em seu trabalho, mas sua vida sofre uma reviravolta quando ele e sua esposa são sequestrados e mortos. Ray consegue ser ressuscitado pelo Dr. Emil Harting (Guy Pearce), que conseguiu essa façanha substituindo todo o sangue por nanitas, que são nanorobôs que agem em uma células sanguínea, só que nesse caso de uma forma muito criativa e exagerada.

Muito semelhante ao Wolverine, Ray não consegue se lembrar de nada do seu passado e  adquire a capacidade de se regenerar por completo, não importando o quando ele fique ferido, além de ter suas capacidades físicas ampliadas. Ele também ganha acesso a redes de computador, incluindo a internet, sem precisar de nenhum dispositivo além de seu cérebro,
o tipo de herói que todo adolescente quer ser.

Há ainda um grupo de super soldados: KT (Eiza González), Jimmy Dalton (Sam Heughan) e Tibbs (Alex Hernandez), cada um com uma história trágica e um membro robótico, que estão ali apenas para desempenhar um papel genérico e não se desenvolvem na trama. Tudo muito legal, até Ray lembrar-se que foi assassinado e viu sua esposa ser morta friamente. Ele decide vingar-se a qualquer custo, mas nem tudo é o que aparenta.

Uma nanotrama

Potencialmente tudo isso seria perfeito para um filme de ação desenfreada e muita computação gráfica, que são entregues até certo ponto. Pessoalmente, eu parei de considerar Bloodshot como um filme e comecei a ver como se fosse um videogame, pois a proposta seria perfeita para um jogo, se não fossem todos os aspectos genéricos da trama que qualquer pessoa que já assistiu filmes de ação ou de super-heróis reconhece sem esforço. Isso não é necessariamente ruim, o longa é até divertido, mas o que decepciona é o potencial desperdiçado.

Sem entrar em detalhes para não estragar a trama, o filme é repleto de clichês e uma mistura de diversas outras obras, o que não seria um problema se fosse bem utilizado. São poucas cenas de ação que se destacam, não existe desenvolvimento do personagem e a inexpressividade do astro Vin Diesel não ajuda a criar empatia com o personagem. Existe ainda uma tentativa de subtexto sobre liberdade e sobre cada um ter a escolha de quem quer ser, mas é preciso um esforço enorme para enxergar algo além dos nanitas espalhando-se e voltando em câmera lenta, que é o charme do filme (fica aqui meu parabéns à nanotecnologia). 

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A história coescrita por Jeff Wadlow e Eric Heisserer busca uma fórmula desnecessária. É quase como se eles soubessem que a franquia não tem futuro e só entregassem o básico, com medo de errar. Quando o longa encosta timidamente na comédia, subitamente volta a ser “séria”, por medo de ser mal interpretada. Nesse sentido, o grande destaque fica por conta de uma adição surpreendente de Wilfred Wigans (Lamorne Morris), que com pouquíssimo tempo  de tela, é um personagem lunático e genial, com falas malucas que fazem rir sem esforço.

Enfim, “Bloodshot” é um filme mediano quando poderia ser excelente. O final é totalmente anti climático e é até ironizado por um dos personagens, com pouca expectativa para o futuro. Se o universo Valiant continuar nos cinemas, será preciso um esforço bem maior (e talvez um ator no papel principal que seja mais expressivo) para decolar.