O tempo passa rápido e pode ser cruel. Passa tão rápido quanto as incríveis máquinas que percorrem as 24 horas do circuito de Le Mans e pode ser tão desgastante quanto o evento. Assim, muitas vezes, alguns grandes feitos na história são esquecidos como as marcas de pneus desgastados na pista.
Pode parecer um tanto poético, mas essa introdução é uma boa partida para falarmos de “Ford vs Ferrari”. Aliás, importante não deixar se levar pelo título, que pode dar a impressão de uma guerra entre duas fabricantes de automóveis, quando, na verdade, temos aqui um filme sobre seres humanos.
Então, para começo de conversa, este não é um filme dedicado somente aos fãs do automobilismo. A base da obra é a guerra entre as duas marcas na década de 1960, batalha iniciada pela Ford, que queria ir além dos carros de passeio: ela queria ser a campeã de Le Mans, dominada, até então, pela Ferrari.
Todavia, apesar deste pano de fundo, o que temos aqui é um filme muito mais denso, que fala da ambição, da garra, do heroísmo e também da coragem do homem. E temos um tanto dessas características vindas de dois lados distintos: dos empresários e dos pilotos. É uma volta ao passado, uma busca para entender um pouco do que move esse mundo da corrida automobilística.
E a soma de tudo isso poderia resultar em um filme superficial, afinal não é um bicho de sete cabeças filmar carros e fazer um relato histórico. Contudo, o que temos aqui é uma obra feita com paixão, que parece justamente dar vez às emoções, em vez de focar somente nos fatos.
Também não poderia ser diferente com talentos como Matt Damon e Christian Bale tomando o volante e um ótimo diretor para mostrar o que de verdade importa. Se o filme é tudo isso que estão falando? Sim, tudo isso e mais um pouco.
Há considerações a serem feitas – afinal, mesmo uma corrida perfeita pode ter algumas derrapagens – e como sempre há um público-alvo. No entanto, temos aqui um excelente retrato de homens que correm pela paixão, alguns que até podem ser desconhecidos para uma grande parcela dos espectadores.
Complexo como uma corrida
Eu não sei vocês, mas eu sempre me pergunto o porquê da escolha de alguns temas. Afinal, o que levou os irmãos Butterworth e Jason Keller a contarem essa história? Com tantos episódios na corrida, por que eles queriam falar deste episódio em específico? Qual a relevância do tema para o grande público?
É claro que após tantos anos de acompanhamento da indústria de filmes, nós já temos uma percepção formada sobre os tipos de temas que Hollywood gosta de abordar, sendo um deles o reforço constante a supremacia das marcas e dos heróis americanos. Então, nesse sentido é bastante óbvio que eles queiram relembrar de como alguns heróis viraram o jogo em Le Mans e garantiram glória mundial para seu país.
Por outro lado, é interessante notar que esta não é uma história apenas de vitória, mas também de lutas e derrotas. O filme que é quase tão longo quanto algumas corridas (são 2 horas e 30 minutos) pode parecer cheio de curvas, aceleramentos e reduções de velocidade, porém há boas justificativas para esse ritmo inconstante e também para a duração prolongada.
Nesta volta ao passado, o roteiro de “Ford vs Ferrari” precisa dar o contexto histórico, apresentar os fatos, desenvolver protagonistas e fazer isso de forma emocionante – afinal, estamos falando do mundo das corridas, que é pura adrenalina. Dessa forma, apesar de muito coeso, o script alongado pode parecer cansativo para espectadores que gostam de filmes que vão direto ao ponto.
E, novamente, parte do problema é o título enganoso, que nos atrai para uma corrida, mas acaba nos colocando no box para acompanhar a vida dos protagonistas. Só que isto não é uma coisa ruim, pois a emoção da coisa é justamente ver os “heróis” em suas próprias corridas para lutar contra o corporativismo e enaltecer o espírito do automobilismo mesmo.
Aqui sim, finalmente temos o que faz de “Ford vs Ferrari” ser um campeão: os humanos. E não estou falando apenas dos protagonistas, mas do elenco competente. O dinamismo entre Matt Damon e Christian Bale é perfeito, algo que só é possível também graças aos desempenhos individuais muito impactantes. Eles retratam seres humanos mesmo e são muito convincentes.
Sabe aquele tipo de coisa que só grandes atores como Matthew McConaughey conseguem fazer em filmes como “Interestelar”? De parar e chorar na frente de uma TV e fazer a gente mergulhar nas emoções? Esse é mais ou menos o feeling com Christian Bale aqui, que muitas vezes está sozinho no veículo e com uma câmera pegando todas as suas reações e somos convencidos com sua interpretação perfeita.
E o mérito não é só deles, pois temos outros grandes talentos aqui que também ajudam a dar o contexto, como é o caso de Tracy Letts, que é responsável por uma das cenas mais hilárias e, ao mesmo tempo, emocionantes da película. E é na composição de pequenos trechos que “Ford vs Ferrari” leva o mérito de ser um dos melhores filmes do ano e também do gênero.
Voltando ao passado
É claro que uma produção desse nível não pecaria em detalhes técnicos, afinal o contexto é importantíssimo para o resultado final. Dessa forma, temos uma “direção impecável” (entendeu o trocadilho?) de James Mangold – que você possivelmente adora pelo incrível trabalho em “Logan” (não o carro da Renault, o filme neste caso).
Mangold prova sua versatilidade aqui por ter que lidar com situações muito distintas e que são bem difíceis de colocar num filme que tenta retratar uma época passada com tantos detalhes. Das situações domésticas, passando por diálogos mais intimistas, aos momentos mais acelerados nas pistas, com ângulos muito fechados nos atores, e mostrando com detalhes os acidentes comuns no automobilismo, somos levados a crer que estamos em 1960, mas vendo um retrato sem defeitos.
Tão bonito quanto uma Ferrari, tão emocionante quanto a adrenalina de correr num Ford GT40!
Mérito também da equipe de produção, que caprichou no design, e também do diretor de fotografia, que juntos pintam essa ambientação. Importante notar o trabalho também na reconstrução dos veículos e na simulação dos ambientes, pois ainda que muita coisa ainda esteja bem conservada, é preciso muita competência (e dinheiro) para criar essa atmosfera permeada por supermáquinas.
O evento fica completo com a trilha sonora muito puxada para o lado emotivo, que nos permite sentir o batimento cardíaco acelerado e embarcar na emoção da corrida. Enfim, um filme que acerta no dinamismo entre planejamento e execução. Não é de se duvidar que ele realmente esteja indicado em diversas categorias do Oscar.
E, para finalizar, é bom ver uma obra que volta para contar sobre alguém como Ken Miles, que apesar de seus defeitos e de ter tido seus momentos de glória, merecia uma homenagem (e talvez esse tipo de reparação) proporcionada pelo filme. Vá ao cinema e sente no banco do carona, porque a corrida de “Ford vs Ferrari” é emocionante!